Ìségún e as profundidades do afrofuturismo sankofista

Lu Ain-Zaila. Ìségún. Monomito, 2019.

Este é um convite para mergulhar comigo na leitura de Ìségún e refletir sobre algo que tem me inquietado desde o início do meu doutorado: a escassez de uma literatura brasileira de qualidade, voltada para o entretenimento, com protagonismo e exaltação da mulher negra. Seria maravilhoso encontrar nas prateleiras obras sobre nossa cultura e identidade, utilizando elementos da ficção científica e da fantasia para criar narrativas afrocentradas, não é mesmo? Até aqui, como a ficção brasileira tem narrado as tragédias que nós, mulheres negras, vivenciamos? Parece que a literatura brasileira negligencia as massas, enquanto o audiovisual supre nossa necessidade de entretenimento, atingindo um público mais amplo. Além dos persistentes índices de analfabetismo, baixo letramento e das dificuldades de acesso aos livros, os escritores enfrentam o desafio de se dedicarem inteiramente à escrita, sem a garantia de que suas obras serão consumidas e de que a sua profissão será reconhecida. Há espaço para mudanças?

Ìségún, novela afrofuturista cyberfunk de Lu Ain-Zaila, lançada em 2019 pela editora Monomito, desafia as bases da literatura como a conhecemos. Com recursos inovadores não explorados anteriormente por autores que se aventuraram na ficção especulativa brasileira, a autora nos apresenta caminhos de criação de um livro de entretenimento poderoso, com a chama da mudança, sem se submeter às grandes corporações – uma metáfora inteligente que permeia toda a narrativa. Evitando dar spoilers, proponho a leitura do livro e deixo o convite para conversarmos sobre esses e outros assuntos que nos envolvem.

Em um cenário dividido entre Cidade Baixa e Cidade Alta, que poderiam ser associados tanto a Salvador quanto a qualquer outra área costeira de um país contraditório, segregado e gentrificado, a parte alta abriga pesquisas e tecnologia, enquanto a parte baixa concentra os resíduos produzidos. Abordando a relação entre meio ambiente e ética tecnológica; usando palavras de origem iorubá, jargões científicos, siglas e acrônimos e cruzando investigação policial, elementos futuristas e referências à ancestralidade africana, Ìségún nos apresenta a protagonista Zuhri. Ela é detetive da NACCOAH (Núcleo de Combate a Crimes de Ordem Ambiental-Humana) e possui uma visão peculiar da realidade, pois reside na Barreira do Mundo, um bairro situado na fronteira. Com Zuhri, mergulharemos em um universo distópico onde passado, presente e futuro se fundem.

Cinco anos após um evento inicialmente inexplicável, Zuhri investigará a morte brutal de um homem negro de cinquenta anos, cujo braço exibia a cicatriz da implantação de um chip. Esse homem é o Dr. Diop, líder de pesquisas na área de biolimpeza industrial da Alphabio Tech, uma empresa que presta serviços para produtoras de resíduos tóxicos. Ele estava desenvolvendo um novo filtro para usinas de alta poluição ambiental. E nossa protagonista se sente impelida a investigar os crimes por trás da morte do pesquisador, percorrendo quadras de escolas de samba, vielas e prédios nobres.

Durante a investigação, ela descobre que testes biológicos eram realizados a partir da mistura de um tipo específico de água com uma porção de “awá”, retirada da nuca de pessoas negras que possuem uma chama especial. Esses testes produziam uma substância que adoecia as pessoas, sem que os sintomas fossem associados à poluição. O efeito resultava da adulteração nos filtros e não afetava diretamente as pessoas, mas sim o “èmi” dentro delas – uma espécie de desejo de mudança provocado pela chama interna. Nossa heroína então se vê diante da missão de salvar sua comunidade, mas sem se tornar uma mera peça de pesquisa nas mãos das megacorporações.

Entre idas e vindas, cruzando tempo e espaço, Zuhri se conecta com Ayomide, uma força de outro mundo que assume formas femininas e masculinas, permitindo-lhe compreender seu passado, seu presente e vislumbrar futuros, em um processo denominado por Lu Ain-Zaila de “Sankofismo”. Ìségún convida, desde a capa ilustrada por Assalamandra, para um mergulho de cabeça nesse movimento presentificado de olhar para trás mirando o futuro. Através das expressões “afrofuturismo” e “sankofismo”, a autora ficcionaliza possíveis futuros de nossas identidades e culturas, incluindo utopias e distopias, para pensar o fim e o pós-fim de um mundo de desigualdades, disputas, opressões e resistências.

Através do que a autora chama de “novela cyberfunk”, imergimos em uma mistura única de mitologia africana, ficção científica e especulações futuristas. As histórias de “cyberpunk” exploram temas como megacorporações, desigualdade socioeconômica e avanços tecnológicos, com personagens marginalizados, hackers e anti-heróis; Lu Ain-Zaila acrescenta sua própria marca ao gênero. Em uma abordagem única, ela introduz elementos como uma heroína negra e uma rádio local, que fazem uma autêntica invasão hacker nos sistemas da Alphabio Tech. Ao substituir o “p” de “cyberpunk” pelo “f”, a autora oferece uma interpretação alternativa. Nessa variação, vemos elementos específicos da cultura afrofuturista misturados aos da música e estética afro-brasileira.

Lu Ain-Zaila explora conexões entre diferentes formas de expressão artística e cultural, refletindo as experiências dos que vivem às margens e suas formas de resistência, identidade, tecnologia e cultura. Sua abordagem também abre espaço para reflexões mais profundas sobre as interseções entre música e literatura na escrita de autoria negra do Brasil. Me ocorreu a expectativa de ver a massa funkeira aparecer na narrativa, o que infelizmente não aconteceu. As letras de canções que embalam a história, escapando pelas janelas dos moradores e ecoando pelas caixas da rádio comunitária são variadas, com predominância de samba e rap nacional. Entre os ritmos do samba e do rap, a autora prepara o terreno do afrofuturismo; talvez seja tarefa para quem deseja seguir seu caminho a possibilidade de ampliá-lo.

Embora Ìségún seja um ótimo livro, gostaria de abordar um outro aspecto que me decepcionou um pouco: a quantidade de notas de rodapé, que acabaram atrapalhando minha imersão completa no universo ficcional. Como leitora ávida por momentos de entretenimento, especialmente em um gênero como ficção científica e investigação criminal, considero crucial que a narrativa seja fluida o suficiente para prender a leitora, sem interromper o fluxo de curiosidade e a vontade de descobrir o que acontece em seguida. Portanto, para manter ainda mais o envolvimento com a trama e garantir que a leitora mergulhe de fato na história, sem perder a conexão com a proposta fictícia, seria melhor evitar notas de rodapé, que acabam tornando a leitura um pouco truncada e com um caráter excessivamente didático, quebrando a ansiedade pelo desfecho e a fluidez característica desses gêneros. Por exemplo, na página 44, quando Zuhri abre o conteúdo do chip, encontrei um formato de escrita que me prendeu totalmente. Ela diz: “Diop e essa mulher descobriram algo. E o que eles sabiam, eu vou descobrir”. A pausa para o próximo parágrafo tem espaçamento duplo, o que criou uma sensação de mistério que me envolveu e me instigou a prosseguir a leitura.

E se, na ficção, a missão é evoluir, o mesmo ocorre no campo da leitura, produção e crítica literária negro-brasileira. Enquanto nossa heroína evolui no plano fictício, nós, leitoras negras, nos inspirando em Lu Ain-Zaila, precisamos manter a chama acesa, com a circulação de livros de autoria negra feminina e a formação de público leitor. Ìségún é inspiração de prazer, diversão e entretenimento cultural, no qual a literatura é absorvida por um público amplo de potenciais leitores, sendo nós as protagonistas que não cedem às megacorporações. É chegado o momento de prosseguir em “sankofismo”. Inspirada na obra de Lu Ain-Zaila, pergunto: quais seriam os próximos passos para a manutenção da literatura com protagonismo negro de qualidade? Penso que seja nosso dever manter sempre acesa a chama da literatura negra feminina, formando público leitor e produzindo na literatura brasileira espaços de qualidade para o entretenimento, a resistência e a celebração de nossa cultura e identidade. Somos as protagonistas de nossa própria história e não estamos sozinhas nestas águas. Ìségún nos lembra disso a cada página virada.

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