Régia Agostinho. Maria Firmina dos Reis: mulheres e poder no Brasil. Malê, 2025.

Qual era o mundo em que vivia a escritora Maria Firmina dos Reis?
Essa é a pergunta que a historiadora Régia Agostinho – professora da Universidade Federal do Maranhão e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em História/CCH de São Luís – tenta responder no livro Maria Firmina dos Reis: mulheres e poder no Brasil, publicado pela Editora Malê em 2025, ano do bicentenário de morte da autora.
Quando pensamos em escritoras do século XIX, é comum encontrarmos empecilhos para contextualizar suas vidas e suas obras. Seja pela falta de documentos, relatos ou pesquisas, muitas vezes tentamos imaginar como seria viver em um século no qual as mulheres ainda tinham tão poucos direitos conquistados em uma sociedade patriarcal. E, talvez, seja interessante pensar que mesmo campos de estudos como a “História das mulheres” e a “Literatura de autoria feminina” frequentemente obliteraram, em suas análises, a questão racial. Então, como será que viviam as mulheres negras? Ou melhor, como era o mundo no século XIX para as mulheres negras?
Às vezes, quando penso em Maria Firmina dos Reis, fico imaginando quem eu seria se vivesse no século XIX: eu poderia pesquisadora? Eu poderia ser professora? Eu poderia escrever ou publicar deliberadamente o que eu quisesse? Como se, hoje, também pudéssemos fazê-lo, sem colocar o nosso jogo com a branquitude em risco… além disso, penso que eu não poderia ser livre (e creio que liberdade vá muito além de alforria).
Régia quer escrever uma história a contrapelo dos discursos oficiais, ou seja, ao invés de partir das perspectivas do hegemônico, ela procura ler os “entres” das narrativas: será que realmente os escravizados foram passivos no processo de escravidão? Será que não houve muita luta e resistência dos negros? Como será que as mulheres eram representadas pelos escritores e pela imprensa? Como será que elas viviam no século XIX?
No prefácio, Luciana Diogo – doutora em Literatura Brasileira pela USP – aponta que Régia procura dialeticamente expor a barbárie contida nas produções literárias e nos discursos. Segundo a pesquisadora, é ao interpretar pela perspectiva dos dois mundos – dos senhores e dos cativos – que Régia conseguiu encontrar as rasuras nas narrativas, incluindo as redes de afeto e solidariedade entre os escravizados.
Nesse sentido, o que eu seria hoje, então, senão uma história a contrapelo do meu próprio corpo de mulher negra situado em um espaço-tempo? Se hoje habito a universidade, se pesquiso e se escrevo, é porque existiram mulheres como Maria Firmina nos Oitocentos para que também continuemos aqui – resistindo.
Não existe história da literatura sem Maria Firmina dos Reis e não existe pensar a relação entre crítica, teoria e historiografia literária sem nós aqui – hoje. Nós, mulheres negras, somos a sua herança. Nós somos as herdeiras de um legado que se opõe ao projeto colonial desde o século XIX.
O livro, além de contar com o prefácio de Luciana Diogo, possui seis capítulos. Logo nos três primeiros capítulos conhecemos o Maranhão no tempo de Maria Firmina, a economia e a população maranhense na segunda metade do século XIX – incluindo um enfoque para as mulheres nessas relações, análises de anúncios de venda e fuga de escravizados nos jornais da época, contextualizando a escravidão e o processo da Abolição. Régia traz para a sua obra tabelas, fotografias e trechos retirados da imprensa – o que enriquece a visualização da leitora – e nos propicia uma perspectiva do tempo e do espaço em que viveu Maria Firmina.
À medida que avançava no livro de Régia Agostinho, me perguntava se eu poderia ser uma ali naqueles anúncios de fuga ou de venda. E, também, me perguntava: será que minhas ancestrais já estiveram nesses anúncios? Será que minhas ancestrais também escreveram uma história a contrapelo em suas próprias vidas? Assim como Régia afirma depois de analisar os anúncios, “se isso realmente aconteceu, nunca saberemos”.
Assim, nos outros três capítulos restantes, começamos a adentrar mais na vida e obra de Maria Firmina: percorremos os debates e as pesquisas sobre a escritora, as imagéticas associadas à sua memória – incluindo fotografias dos lugares importantes do Maranhão que possuem relação com sua vida e legado, a realidade das mulheres literatas dos oitocentos, as representações das mulheres nas obras da autora e análises dos textos antiescravistas e abolicionistas Úrsula e “Gupeva”.
Uma das coisas que mais me intriga é pensar a relação com o passado: como pensar o passado como algo distante se ele continua aqui? Lembro da acolhedora frase do narrador de Úrsula: “o negro sentia saudades”. É obvio que sentia saudades de um tempo sem escravidão. É óbvio que sentia saudades de não precisar lutar contra a sua humanidade. É obvio que sentia saudades, porque negros têm sentimentos.
Sinto algo sobre a sombra do contemporâneo: discutir racismo é algo contemporâneo? Combater o patriarcado é algo contemporâneo? Será que pensamos mudanças na estrutura do conhecimento porque só nos dias de hoje temos ferramentas para questionar e nos conscientizar? Tudo isso parece ser impossível para mulheres negras. Nós nunca vivemos em plenitude “o contemporâneo” e, quando uma escrita política como a de Maria Firmina já estava em circulação em pleno século XIX, percebemos que a conta da dívida histórica chegou para os brancos, finalmente, no contemporâneo, enquanto as mulheres negras rasuravam a história oficial ao longo dos séculos. Talvez o contemporâneo seja a época em que os brancos sintam saudades, pois os tempos de hoje são aqueles nos quais os discursos a contrapelo estejam caminhando das margens para o centro.
Logo, é Régia, como historiadora, que nos auxilia a reconstruir um pouco do imaginário da sociedade brasileira do Maranhão do século XIX e a entender – ou continuar imaginando – como Maria Firmina construiu sua visão de mundo e pensamento crítico frente à escravidão, ao racismo e ao patriarcado como intelectual, escritora e intérprete do Brasil. Segundo Régia, publicar sua tese sobre a autora é uma postura cívica, visto que a escrita de Maria Firmina é uma atividade política.
Assim, questionamos: em que mundo vivemos nós, hoje? Quem somos? Onde estamos? O que fazemos?
Para mim, ler e estudar Maria Firmina dos Reis se tornou uma força. Me sinto como sua parente distante querendo saber mais sobre o que ela era em seu tempo. Sinto como se quisesse ser sua própria linhagem. Nossa autora, Régia Agostinho, é uma das precursoras de nossa linhagem no século XXI ao ser a primeira pesquisadora a publicar uma tese de doutorado sobre Maria Firmina dos Reis no campo da História, em 2013, defendida na Universidade de São Paulo (USP) e contribuindo com esse pioneirismo para a fortuna crítica da autora.
Régia, tenho certeza: nós, as Firminianas – mais do que pesquisadoras de Maria Firmina, herdeiras de seu legado intelectual – somos (co)criadoras de uma ancestralidade crítica. Bem, o que é isso? Acho que somos nós (re)escrevendo, (trans)criando, (re)elaborando um pensamento literário brasileiro a contrapelo.
Somos as guardiãs da memória e dos saberes de Maria Firmina que, com sua literatura, deixou um patrimônio para a nossa humanidade: pensar um novo mundo.

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