Hildália Fernandes. Patuás. Segundo Selo, 2022.

“É um processo assustador esse o da (auto) descoberta via (auto) conhecimento. Doloroso por demais, quase insuportável”.
Patuás, escrito por Hildália Fernandes, é um livro que reúne uma sorte de contos a partir da escrita do páthos, do sofrimento, da paixão e do afeto. É uma leitura que nos sensibiliza de uma forma muito pungente, talvez porque Hildália fala de nós: das nossas dores, das nossas feridas, das nossas cicatrizes e das nossas não-vidas. Nossas vidas, as vidas de mulheres negras. Não somente nossas, mas de nossas mães, de nossas avós, de nossas bisavós, de nossas ancestrais. Cada conto narra o silêncio ecoado como o grito mais alto, mas que foi, por séculos, abafado. Assim, a perda, o estupro, o aborto, o não-direito, a exploração e o não pertencimento são algumas temáticas presentes nos contos.
A cada narrativa, os pelos do meu corpo se arrepiavam como se eu fosse capaz de estar exatamente no lugar de cada personagem. E estimo que isso se deva ao fato de nós, mulheres negras, passarmos por experiências muito parecidas ao longo da vida. Nossos corpos sofreram e sofrem violências há anos, décadas e séculos. Apenas se transformaram as formas de violência. E Hildália conseguiu bravamente afetar suas leitoras com histórias que são tão nossas e de nossas ancestrais.
“Relicário”, o conto que inicia o livro, tem como narradora-personagem a duquesa Labalabá, que chegou à Bahia – mais especificamente, à Ilha do Medo – por volta de 1855. Grávida e afastada do convívio social por conta da hanseníase (antigamente conhecida como lepra), foi levada para um lugar escuro, úmido e fétido. Lá, sofreu um arrancamento que resultou na maior perda se sua vida, o que a deixou completamente desesperançosa. O detalhamento dessa trama é um dos mais pungentes do livro e nos faz refletir sobre não-consentimentos, abusos e perdas.
“E do silêncio se fez o grito” é um conto arrebatador. Quem nunca soube de uma história como a da Flor? Flor sofre um crime incestuoso e, a partir desse crime, toma decisões trágicas para lidar e, quem sabe, amenizar toda a desgraça que lhe foi depositada. – “e o que por ventura restou foi levado pelo vento, virou adubo, mas nada fez brotar”. Esse conto é arrebatador, pois traz à tona uma das piores violações ao corpo feminino – que ainda é muito presente nos dias de hoje, infelizmente. A dor de Flor é a dor de muitas mulheres: crianças ou idosas, vestidas com roupas compridas ou curtas, vivas ou até mesmo mortas.
“Por fora, exibia uma fortaleza intransponível, parecia não lhe faltar dignidade, amor próprio e posse de si. Fazia disso um exercício diário até que se transformasse em realidade. Era o esperado e cobrado às mulheres negras desde sempre e não seria ela aquela que decepcionaria o imaginário e inconsciente coletivo”
– ao ler esse trecho do conto “Transmutação”nos deparamos com todo o ideal que construíram para nós, aquilo que por muito tempo nos obrigaram a ser: fortalezas resistentes e inabaláveis. Não que não sejamos potências e resistências, mas somos também fragilidade; não suportamos e nem devemos suportar tudo o que nos é imposto. Além disso, o conto é muito interessante porque relata o gozo de Epifânia, a protagonista, pela escrita. E, a partir dele, podemos entender o conceito de escrevivência, desenvolvido pela Conceição Evaristo – no qual, por meio da prática escrita, as vivências de mulheres negras são mobilizadas, muitas vezes em um momento de epifania.
“Não mais é permitido fragilizar-se. Fraquejar. O que esquecem é o fato de que sentir não é patológico. Não sentir é que pode vir a ser”.
Ao final do conto“Desolação”,há um rastro de esperança: “Vou me reerguer, ei de vencer, no meu tempo e no meu ritmo. Não serei nunca mais a mesma, eu sei. Mas também não sucumbirei”. E é essa esperança que o livro nos requer. A esperança apesar de. Se hoje estamos aqui, é porque muitas esperançaram-se e resistiram por nós.
Há numerosos contos em Patuá e seria impossível citar todos aqui. Mas vale a pena ler cada um e deixar que eles digam tudo que podem dizer. Hildália é genial com os trocadilhos, os jogos de palavras e as metáforas. A sua escrita é rica não somente em conteúdo, que dilacera e reconstrói, mas também na forma, onde a escolha de cada palavra orna com o sentido de tudo que é dito. A leitura a partir do páthos de Hildália é uma oportunidade de (auto)conhecimento, de encontro com as nossas dores, com as nossas cicatrizes, mas também com as nossas curas.
“Eu não consigo deixar de senti-los em cada bàtá (ritmo sacro do candomblé para louvar Sàngó) tocado para o Rei de Òyó e da justiça! A Ele mesmo os entrego para limpar a minha alma do ódio ancestral que carrego desses coloniza-dores. A outra face não darei jamais!”

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