Nadifa Mohamed. Menino mamba-negra. Tradução de Marina Della Valle. Tordesilhas, 2021.

A escritora somali-britânica Nadifa Mohamed nasceu em Hargeisa, na Somália, em 1981, mudando-se com a família para o Reino Unido quando criança, onde decidiram permanecer quando a guerra eclodiu em seu país natal. Nadifa estudou História e Política no St. Hilda’s College, Oxford. Seu primeiro romance, Menino mamba-negra, foi publicado pela primeira vez em 2010, tendo sido indicado para diversos prêmios, como o prêmio Orange de ficção e o Guardian First Book Award. Narrado em terceira pessoa, o livro é baseado nas memórias do pai da autora acerca de suas viagens, nas décadas de 1930 e 1940.
O romance nos apresenta uma história semibiográfica sobre deslocamento forçado, possibilitando à leitora acompanhar a trajetória de Jama, uma criança Somali que, após a morte repentina e cruel de sua mãe por conta da doença, inicia uma longa jornada em busca de seu pai, que não vê desde bebê. Dessa maneira, o rapaz, amargurado pela dor da perda, se lança em uma perigosa viagem que o leva por Djibouti, Eritreia, Sudão e Egito. Pode-se definir o final da infância e a adolescência de Jama como uma vida em transição, assim como as trajetórias de incontáveis crianças somalis que precisaram lidar constantemente com os perigos provocados pela guerra e com as forças fascistas italianas que dominavam parte da África Oriental. A miséria, a injustiça, a exploração e o racismo permeiam todo esse romance, forjado a partir da história de uma terra imersa em violência. Um fator que atribui outra camada de lirismo ao romance de Nadifa é a presença de seres sobrenaturais e de tradições no imaginário das personagens, que conferem um caráter mais complexo à narrativa brilhantemente construída pela autora.
O principal fator que separa essa obra de um relato histórico sobre as consequências da Segunda Guerra Mundial para a África e para o seu povo é o lirismo que a autora, Nadifa, utiliza para cumprir seu objetivo, assim definido por ela mesma: atuar como griô de seu pai, transmitindo suas memórias e desenterrando vozes sufocadas que precisam ser ouvidas. Como lemos no primeiro capítulo do romance:
Conto a você esta história para poder transformar o sangue e os ossos de meu pai – e seja qual for a mágica que a mãe dele costurou debaixo de sua pele – em história. Para transformá-lo em herói; Não o tipo lutador ou romântico, mas o real, a criança faminta que sobrevive a cada pedra ou flechada que a sorte desavergonhada joga contra ela e que agora pode sentar-se e contar as histórias de todos os que não conseguiram. Conto a vocês esta história porque ninguém mais vai contar.
Personalidades cativantes e poderosas cercam Jama ao longo de sua viagem. A primeira (e talvez a mais marcante) a que somos apresentadas é Ambaro, a mãe do rapaz, que o criou na primeira infância, completamente sozinha, como uma força da natureza, retirando de seu sangue a força e a coragem sobre as quais o jovem se ergue na cidade barulhenta e feroz do Áden, no Iêmen. Até mesmo a rigidez com que Ambaro trata o seu filho é um reflexo da dificuldade a que ambos eram submetidos ali.
A mãe de todos os marinheiros deve ser o mar, mas Ambaro era mais poderosa, mais tempestuosa, mais doadora de vida do que qualquer poça de água. […] Seu amor era violento, lava espessa que derramou na boca do filho; ela cortou suas veias e fez a transfusão de seu sangue quente e selvagem para a alma dele.
Se personagens como essa são importantes para que o protagonista se coloque no mundo diante da miséria e dos deslocamentos, cruciais na jornada de Jama para que ele se entenda como pertencente a algum lugar, a autora também representa com excelência as forças europeias na África Oriental, personificadas como soldados fascistas italianos ou britânicos, que marginalizam e exploram a propriedade, o trabalho e as terras de eritreus, somalis, iemenitas e outros povos, antes mesmo da Guerra, que só fez piorar essa relação de dominação. Essas forças são responsáveis pela esmagadora maioria de conflitos que deslocam e manipulam Jama cada vez mais, humilhando-o e agindo de maneira violenta e racista.
[…] vai ver ainda mais claramente que há ferengis que acham que você não sente dor como eles, não tem sonhos como eles, não ama a vida tanto quanto eles. É um mundo ruim em que vivemos, e você é como uma pulga no lombo de um cachorro, por fim, vai terminar entre os dentes dele.
É em meio a essa realidade de intensa violência e racismo que Nadifa tece a história de seu pai, carregada de sua própria visão narrativa e levantando imagens de extrema relevância para a reflexão acerca da dominação que era imposta aos países da África oriental por potências externas.

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