Taylane Cruz. Menina de fogo. Jandaíra, 2023.

O prefácio de Menina de fogo,escrito pela Professora Doutora Franciane Conceição da Silva, uma das intelectuais negras referenciais nos estudos literários brasileiros contemporâneos, nos convida a revisitar as memórias da infância, desencadeando uma viagem pessoal coletiva. Automaticamente fui transportada para os meus 10 anos. Para muitas de nós, nascidas em uma era “pré-digital”, a infância foi moldada por referências culturais que, frequentemente, negligenciaram a representatividade negra. A ausência de espelhos culturais positivos, como bem aponta Grada Kilomba, impõe às crianças negras um processo de alienação, de tal modo que a identificação com o próprio reflexo é dificultada pela hegemonia de imagens brancas.
Lembro da minha própria infância, um turbilhão de alegrias e descobertas. Cresci em um mundo no qual a televisão era a principal janela para o imaginário coletivo. As propagandas, os desenhos animados, as revistas Capricho, tudo isso reforçava um padrão de beleza e sucesso que excluía a negritude. A Disney, a Barbie, as músicas decoradas da Xuxa, todos esses ícones da cultura, embora carregados de magia na época, também perpetuavam a falta de representatividade.
Essa ausência de referências positivas, somada ao desprezo pelas emoções infantis, agrava o impacto do racismo na infância. As crianças, por vezes silenciadas, internalizam as discriminações, construindo uma relação alienada com a própria negritude. É nessa fase que ocorrem as primeiras experiências com o racismo, e o que acontecer durante esse período será determinante no futuro. Nesse sentido, se não romantizamos a infância e entregamos em sua mão um pedaço de papel com caneta, podemos perguntar: o que uma criança pode ressignificar? Qual a visão da criança sobre o mundo? Quantas histórias cabem dentro de uma criança?
Primeiro dia de janeiro de mil novecentos e noventa e seis. É nesse contexto que Menina de fogo, de Taylane Cruz, ilumina as complexidades da infância negra através do diário de Maria, uma garota de doze anos com uma personalidade cativante. A obra, ao abordar temas como racismo, abuso sexual e morte, não romantiza a infância, mas a apresenta em sua crueza e beleza. Maria, com sua voz forte e perspicaz, questiona o mundo ao seu redor, defendendo aqueles que ama e buscando compreender a sua própria história. Através de suas palavras, somos convidadas a mergulhar em um universo de sonhos, medos e descobertas, no qual a imaginação e a realidade se entrelaçam.
Um trecho do diário de Maria exemplifica a força de sua voz:
“13 de janeiro
Tenho birra que me chamem de coisinha. Tenho nome e, se quando nasci, minha mãe o escolheu é porque gostaria de sua filha ter um nome e não andar por aí sendo chamada de coisinha. Mania feia de povo, é coisinha pra lá, coisinha pra cá…”
A indignação de Maria ecoa a luta por reconhecimento e respeito, um tema central na obra.
Menina de fogo nos convida à reflexão sobre as possibilidades da infância negra, um território marcado pelo preconceito, mas também pela resiliência, pela criatividade e pela capacidade de ressignificação. Através da escrita de Maria, Taylane Cruz nos presenteia com um banho de rio em que as palavras lavam as nossas almas e nos conectam com a essência humana. As entrelinhas do livro discutem possibilidades de infâncias de crianças negras que quase sempre são marcadas pelo preconceito, mas que também são impulsionadas pela ingenuidade, pelos sonhos e, principalmente, pelos usos de outras possibilidades da imaginação.

Deixe um comentário