“A escrita está aí para que eu escreva com liberdade”: entrevista com Jarid Arraes

por Verônica Silva, Larissa França, Cinthia Martiniano e Henrique Marques Samyn

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LetrasPretas: Seu primeiro livro publicado foi As Lendas de Dandara. Recentemente, você publicou um belíssimo livro de poesia, Um buraco com o meu nome, mostrando toda a sua versatilidade literária e nos enchendo de orgulho. Quem é a Jarid autora de Um buraco com o meu nome, em comparação com a Jarid autora de As Lendas de Dandara?

Jarid: Acho que poderiam dizer que, como escritora, eu gosto de experimentar. É verdade, claro. É que eu penso que a escrita está aí para que eu escreva com liberdade, para que eu escreva o que eu sinto que preciso escrever.
Eu precisava escrever As Lendas de Dandara, porque era um livro que fazia todo o sentido para o momento político e literário, tanto coletivamente quanto pessoalmente. Eu precisava passar por aquele momento, porque minha trajetória literária começou desse resgate, desse encontro com as mulheres negras que eu não havia conhecido. Agora, depois de ter encontrado o que eu precisava encontrar, depois de ter trabalhado muita coisa e “evoluído” muitas questões, o Um buraco com meu nome reflete essa caminhada.
Como autora, o Um buraco com meu nome mostra quem eu sou de maneira mais profunda, mais complexa, mais íntima, menos preocupada em ser didática, menos preocupada em entregar tudo pronto, menos preocupada em mostrar algo bonito. Para mim, nesse momento, o mais importante é entregar um outro tipo de escrita, algo que eu sempre quis publicar e esperei um pouco para fazer.

LetrasPretas: Pensando no título do novo livro: a ideia de “buraco” remete às ideias de abrigo, toca, mas também à ideia de falta; já “nome” remete à questão da identidade. Isso nos faz pensar também nas Heroínas negras, na representação que possuem para a pessoa Jarid, no processo de reconhecimento e construção de uma identidade. Como esse processo de construção da identidade da mulher negra prossegue em Um buraco com o meu nome?

Jarid: Um buraco com nome é um livro sobre identidade, sobre falta, sobre procura. É um bicho todo ferrado em busca de um buraco seu e esse buraco é tudo o que ele tem. Nesse livro, ao contrário do Heroínas Negras Brasileiras e de As Lendas de Dandara, minha identidade negra não se apresenta gravada em pedra, mas ela se mostra refletida no espelho, numa lágrima, recém-descida de um barco, incerta, confusa, em busca de um buraco com seu nome.
Porque esse é o meu lugar de fala, esse conceito que tanto discutimos hoje. Esse é o buraco com meu nome: uma identidade de uma mulher negra miscigenada, que por muito tempo não soube se era isso ou aquilo, se era suficientemente uma coisa ou outra, e essas questões podem ou não voltar, insistir. Na poesia, elas sempre retornam.
Eu acho necessário, acho importante. Isso também faz parte da identidade negra. Eu falo de cabelo, de como ele é o meu elo com minha identidade. Mas o tom é peculiar. E eu tenho orgulho de ter escrito sobre isso, porque eu estudava sobre miscigenação e lia livros de intelectuais como Kabengele Munanga, então eu acho que seria inexplicável e incrível ler poesias sobre isso quando eu estava nessa caminhada. Hoje eu também gostaria de continuar lendo mais e mais.
Agora, sobre racismo, há outros. Sobre genocídio da população negra. São poemas doloridos e difíceis. Que também fazem parte da identidade coletiva e pessoal.

LetrasPretas: Em que o seu novo livro se assemelha às suas outras obras, e em que se diferencia? Podemos falar em termos de um projeto literário? Se sim, como pensar os diferentes gêneros (prosa, cordel, poesia) nesse projeto?

Jarid: O Um buraco com meu nome se assemelha ao Heroínas Negras Brasileiras e ao As Lendas de Dandara porque minha escrita continua política. Esse meu novo livro é profundamente político e os temas raciais e de gênero continuam muito presentes. Em relação ao cordel, percebo que minha escrita em verso livre, em muitos poemas, tem muita influência da melodia do cordel, do ritmo. Muitas vezes percebi que estava escrevendo um poema todo no ritmo sem que fosse minha intenção e me rendi. Também continuo fazendo questão de publicar livros com projetos gráficos lindos, bem trabalhados, porque amo o livro-objeto. Mas acho que as diferenças são mais perceptíveis. No Um buraco com meu nome eu não faço nada para ser bonito, nem pensando em ser fácil, ou didático, ou adequado. Não é pronto para a escola, por mais que possa ser utilizado em sala de aula, é claro, com o trabalho dos professores. Ele é político, mas não tem fórmulas. Ele não tem ilustrações coloridas ou “agradáveis” no sentido mais comum de ser compreendido. E eu trago um novo tema para meu trabalho, que é a saúde mental. Mas trago da maneira mais aberta de todas, sem a tentativa de deixar confortável. Eu quero que a gente encare as coisas difíceis como elas são, porque a Literatura para mim sempre foi também sobre isso. Sinceramente, considero isso muito bonito.

LetrasPretas: Que diferenças você tem sentido entre o modo como Heroínas Negras foi recebido e a repercussão que Um buraco com meu nome vem alcançando? De que modo você avalia sua própria condição como escritora negra de produção independente no Brasil, após seu terceiro livro?

Jarid: Bom, pouco tempo se passou desde o lançamento e o dia em que respondo a essa entrevista, mas consigo observar algumas coisas dentro desse tempo. Essas coisas podem mudar, mas por enquanto percebo que as pessoas tratam o Um buraco com meu nome como um livro mais adulto e elas se expressam de forma muito diferente quando falam dele. Quando falam sobre o Heroínas Negras, os comentário são sobre a relevância das histórias das heroínas, sobre como o cordel é especial e como o livro é lindo, positivo, didático. Já quando falam sobre o Um buraco com meu nome, elas postam suas poesias favoritas, comentam sobre a estética da escrita, sobre como aquilo se relacionou intimamente com elas. As palavras sobre o Um buraco são palavras fortes, viscerais. Saímos de um campo lúdico para um campo de aprofundamento que tem me impressionado muito.
Outra coisa que me impactou bastante foi o dia do lançamento em São Paulo. Eu fiz no mesmo lugar em que lancei os meus outros dois, o Heroínas Negras Brasileiras e o As Lendas de Dandara, na Livraria Blooks do shopping Frei Caneca. Dessa vez, foi até melhor, porque foi num sábado a tarde, o que facilita para quem trabalho e estuda. Porém foi muito perceptível que a maioria das pessoas presentes eram brancas. O oposto dos outros lançamentos.
Eu fiquei pensando se isso aconteceu porque meus leitores negros não acharam que o livro era suficientemente negro, se ele não estava explicitamente negro, ou se meus leitores negros não se interessam por poesia. Não sei se é pelo estilo literário em si, pois conheço várias poetas negras que são muito lidas, porém observo que seus poemas talvez sejam mais explicitamente negros? Ou talvez a minha estética não seja interessante para meus leitores negros que acompanham uma literatura afrobrasileira que tem uma outra estética? Enfim, muitas perguntas.
Há outras questões sobre racismo, sobre a dificuldade de entrar em espaços elitizados. Mas quero esperar, observar, reunir.

LetrasPretas: Há alguns anos, em uma entrevista, você afirmou: “Escrevo para honrar minha ancestralidade”. Como isso ocorre em Um buraco com meu nome?

Jarid: Essa pergunta é muito linda, porque me fez perceber que me mantenho coerente com esse sentimento. As vezes a gente vai vivendo, o tempo passando, e mudamos porque cumprimos certas missões. Mas isso continua em mim.
Em Um buraco com meu nome eu dediquei alguns poemas para mulheres que vieram antes de mim. Conceição Evaristo, Débora Maria da Silva, Beatriz Nascimento, Amelinha Teles e Elvira Vigna. Mulheres incrivelmente corajosas, que abriram caminhos, mulheres mais velhas.
Isso é algo que me emociona muito e que me sinto honrada em eternizar no meu livro, entendem? Eu espero que os leitores possam pesquisar sobre cada uma delas.

LetrasPretas: O que é a “caligrafia da resistência”, título de um dos poemas de Um buraco com meu nome? Como ela se faz presente em sua produção literária?

Jarid: A caligrafia da resistência é nossa insistência, nossa criatividade, nossa resiliência, nossa força, nosso sofrimento e nossa festa em escrever a História, a literatura e as estratégias para construir uma coisa outra, um mundo outro.
Essa caligrafia da resistência talvez faça parte da minha produção literária, mas eu desejo muito ter essas mãos que escrevem a caligrafia da resistência. Porque eu insisto bastante e tento ser criativa para continuar escrevendo, publicando, inventando projetos, sobretudo coletivos. Acho que isso é algo que a gente vai fazendo meio sem perceber, só porque é isso ou é então desistir. Tudo bem desistir também. Mas não estou preparada para desistir, acho que estou bem para continuar escrevendo e tentando encontrar minha caligrafia.
Acho que o fato de eu ter dedicado esse poema para Conceição Evaristo e Amelinha Teles diz muito sobre o significado do termo. É a junção perfeito da escrita e da resistência. De cada palavra que está ali.

LetrasPretas: Um tema presente no novo livro, e também em suas outras obras, é a liberdade. Em vocação, você escreve: “um corpo que carrega / um útero / […] / é submetido ao destino / de um útero”; já em “meio do céu”, você escreve que “somos / os únicos bichos preocupados / com o futuro”. Como você considera que sua condição de mulher negra influencia esse olhar sobre o tema da liberdade?

Jarid: Antes de eu me compreender como uma mulher negra, eu já sabia que “estamos condenados a ser livres”. A liberdade sempre foi a coisa mais importante da minha vida, em qualquer uma de suas roupagens. E pensar a liberdade nesse sentido existencial sempre foi algo que me trouxe tranquilidade.
Quando eu me compreendi como uma mulher negra, quando comecei a estudar sobre questões raciais e de gênero, é claro que a liberdade tomou uma complexidade e amplitude muito maior. Mas meu olhar está influenciado por quem eu sou, pelo meu contexto, pelo que observo do mundo e por minhas reflexões filosóficas. Acho que aqui cabe discutir privilégios sociais, diferenças culturais até mesmo entre países, entre outras questões que perpassam esse tema da liberdade, essa coisa do “estamos condenados a ser livres”. Mas acho que o Um buraco com meu nome é um livro em que eu mostro muito mais esse Existencialismo. Espero que eu não tenha sido confusa, é que eu não quis ser chata, haha.

LetrasPretas: Como foi o processo de ilustrar o livro? Que semelhanças e diferenças você encontrou entre o processo de criar as imagens e o de criar os poemas? Por que a escolha do carvão como material?

Jarid: Ilustrar o Um buraco com meu nome foi uma experiência bem intensa, mas de desapego. Eu não “sei” desenhar, pelo que se compreende de técnica, claro. Mas eu queria algo que dialogasse com o tema do livro, por isso escolhi o carvão, porque o carvão traria a coisa da sujeira, do feio, do buraco, do animalesco, do escuro, enfim, e eu poderia borrar tudo sem me preocupar em ter os traços exatos. Eu fiz as ilustrações em três dias, ao contrário dos poemas, que levei alguns meses escrevendo. Eu simplesmente me tranquei no escritório, coloquei uma playlist de Ópera e fiz um monte de desenhos pensando nos poemas, nos temas que eu tinha no livro. Deixe que sujasse, que ficasse borrado mesmo. E foi ótimo, porque o designer acabou utilizando até mesmo os borrões e minhas digitais no projeto gráfico do livro.

LetrasPretas: Um buraco com meu nome é um livro muito forte e visceral. Algum dos poemas que compõem o livro exigiu mais de você, em termos afetivos ou emocionais?

Jarid: Sim, alguns poemas foram mais pesados de escrever. Posso citar o uma mulher pergunta, que escrevi de coração mesmo, em um momento em que eu mesma me perguntava “de que adianta”, e esse é um dos poemas que as mulheres mais se identificam e me falam que se emocionam e que dói e enfim. Outro poema que me lembrou algo pesado foi o água de coco, porque realmente aconteceu aquilo comigo, de eu estar no Rio e ver um garoto negro morto pela polícia. Também o mangue-vermelho, que fala de genocídio da população negra. Todos os poemas sobre questões raciais. O poema para Beatriz Nascimento, o nunc obdurat et tunc curat, cara, ele tem uma história de um momento difícil, em que eu me perguntava porque eu era sempre a única negra dos projetos de escrita de mulheres, porque eu sempre tinha que escrever sobre questões raciais enquanto as outras mulheres podiam escrever sobre qualquer outra coisa, mas eu tinha que escrever sobre racismo, porque eu sempre era a única negra. Enfim. Muitos. É um livro pesado, é pra ser pesado.

LetrasPretas: Quão árduo foi chegar onde está hoje e quão longe estamos do ideal?

Jarid: Ixe, estava pensando nisso ontem. Porque o As Lendas de Dandara foi traduzido para francês e vou a Paris lançá-lo agora em outubro, né? Aí estava lembrando de como foi a trajetória desse livro, como levei um monte de portas na cara, ofereci até para editoras de literatura afrobrasileira. Eu conquistei muita coisa e é foda falar que foi com muito trabalho, porque foi mesmo, mas eu detesto esse discurso. Só que falar desse trabalho todo é muito mais uma forma de explicar como o mercado editorial é absurdo. Porque se eu não tivesse dado meu sangue, porque se eu ainda não estivesse dando meu sangue, as coisas não girariam. Eu trabalho muito, todos os dias, sem final de semana, sem feriado, sem hora para começar ou parar. Eu me divulgo, eu vendo, eu monto cordel, eu envio, eu respondo, eu me viro em mil. E mesmo assim as coisas são três vezes mais difíceis. Eu busco uma estabilidade, para conseguir ter um dia a dia menos caótico e exaustivo. Mas não é isso que todos buscamos?

LetrasPretas: Sabemos de toda sua admiração por Conceição Evaristo e o quanto essa inspiração deve interferir na sua produção. Que recado você deixaria para as mulheres que se inspiram na sua escrita, para as mulheres que se leem nos seus versos?

Jarid: O meu recado muda pouco ao longo dos anos: nunca compre o discurso de que escrita é dom. Escrita é prática e está acessível, é possível para qualquer pessoa. Se você quer escrever, pratique, leia, busque referências do que você quer escrever e dê o seu melhor. O seu melhor de hoje não será o seu melhor de amanhã. Seu melhor será ainda melhor depois de amanhã.
Se nenhuma editora quiser te publicar, como não quiseram me publicar no começo, se autopublique. Espero que se inspire em mim para isso, de verdade. Seja em folheto, em ebook, em zine, em livro. Mas veja como eu trabalho nas redes sociais, saiba da importância que existe em se divulgar, em insistir e acreditar no que você faz. Porque tem muita gente que quer ler o que você escreve quando ali existe algo de genuíno.
Se você for de São Paulo, te convido para o Clube da Escrita Para Mulheres: www.clubedaescrita.com.br
E, claro, muito obrigada por me encorajar com essa amizade. A gente tem mesmo que caminhar bem junta.

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