Um aspecto frequentemente negligenciado – ou, quando menos, subestimado – na literatura de autoria negra como um todo, e nas produções poéticas em particular, são os aspectos formais. Sem desprezar a relevância de análises que enfatizam questões temáticas, importa ressaltar que a sobrevalorização do “conteúdo”, em particular quando isso implica uma desconsideração das particularidades da construção formal, pode resultar em abordagens que negligenciam as diversas maneiras como escritoras negras e escritores negros exploram criativamente esses recursos, recaindo na empobrecedora percepção de que a qualidade de suas obras literárias se reduz a determinado conjunto de motivos característicos ou a posicionamentos políticos específicos.
A pertinência de se conceder o devido relevo aos elementos formais pode ser constatada por alguns sucintos apontamentos em torno da produção lírica de uma de nossas mais importantes autoras negras: Miriam Alves. Desde sua estreia como escritora, no início dos anos 1980, nos Cadernos Negros (nesta década, atuaria junto do grupo Quilombhoje Literatura, do qual se desligaria em 1989, seguindo desde então uma trilha independente), Miriam Alves seguiu uma trajetória que consolidou seu nome no cenário literário e intelectual brasileiro – não apenas como uma escritora cuja produção se desdobra em diversos gêneros, mas também como ensaísta, crítica e antologiadora. O poema aqui analisado, Nas nuvens, consta de Estrelas no dedo, livro de poemas publicado em 1985, em edição autoral.
Nas nuvens
Vento vela velando
meus sentimentos escondidosVento vela sua voz
sussurra sombras solitárias
ávidas, famintas, sedentasVento vela viaja
as correntes atadas da fala
faça quebrar-se
soltar-me no quieto da noiteVento vele sopre
nas nuvens
abra caminhos onde me faço
plena em suas mãos.
Observe-se, em primeiro lugar, como a aliteração e a assonância são empregadas em todos os versos do poema, sempre de modo a obter efeitos que acentuam elementos semânticos. A repetição da labiodental [v] opera como um princípio estruturante, ocorrendo no verso que abre cada uma das estrofes, à maneira de uma constante retomada da ação do vento; em cada um desses versos, importa ainda perceber o simultâneo recurso à assonância, sempre com sentidos particulares. No verso inicial, por exemplo (“Vento vela velando”), se a repetição do [ve] sugere a continuidade do movimento do vento, a repetição do [a] e do [n], bem como o efeito alcançado pela alternância [t]/[d], aludem ao modo como aquele elemento se transforma ao incidir sobre a subjetividade lírica referida no segundo verso, de algum modo transferindo sua natureza para essa esfera subjetiva – o que se torna nítido pelo uso da aliteração ([n]/[t]/[d]) e da assonância ([e][o] – esta última presente também no primeiro verso), ao passo que a introdução de novas repetições ([m],[s]) resguardam a especificidade do espaço subjetivo. Não obstante, a assonância resultante da repetição do [a] predomina no segmento central da composição, anunciando a ruptura descrita na terceira estrofe – que é evocada na estância final pelo sujeito lírico, quando o movimento do vento é apropriado com um propósito emancipatório. Não é por acaso que ali se enfraquece a anteriormente referida assonância estruturante (em torno do [e]): assim se materializa a libertação finalmente alcançada – e a aliteração presente na repetição do [m] reforça o vínculo entre o desejo individual (veja-se o pronome oblíquo presente no fim do penúltimo verso) e os meios (“caminhos”) que levam o eu lírico até o destino desejado (“mãos”).
No que tange à construção (poli)métrica da composição, chama a atenção o modo como a baixa variação das duas primeiras estrofes – em que os versos oscilam entre as seis e as oito sílabas – cede lugar, nas duas últimas, a um leque sensivelmente maior de opções métricas. Se a terceira estrofe se abre com um hexassílabo (resgatando a extensão do verso inicial do poema), é seguida por um eneassílabo e por um tetrassílabo – uma dilatação e uma retração anteriormente inexistentes, portanto; não por acaso, isso ocorre no momento em que a ruptura é evocada pela voz lírica. Na última estância, uma oscilação ainda maior – entre um dissílabo (que, aliás, retoma o título do poema) e um eneassílabo –, em meio a dois pentassílabos (medida que só ocorre nessa estrofe final), consolida a ânsia por libertação.
Seria possível estender essa análise ainda por muitas páginas, esmiuçando outros aspectos do poema de Miriam Alves. Um escrutínio rítmico, por exemplo, demonstraria como a estrutura anapéstica do sétimo verso (“as correntes atadas da fala”) desempenha um papel fundamental, dialogando em particular com os anapestos presentes no nono verso; e como a articulação de anapestos com jambos e troqueus, na estrofe final, traz ao poema um colorido rítmico que assume um tom quase celebratório, condizente com o sentido emancipatório ali presente. Penso, contudo, que os apontamentos aqui encerrados são já suficientes para ilustrar a riqueza formal da produção lírica da referida autora.
Se Miriam Alves é uma escritora para quem escrever é sempre um ato político, é também uma autora que exibe um notável domínio sobre o instrumental necessário para a criação literária. Com efeito, em oposição ao que suspeitam alguns, cuidado formal e consciência política são aspectos que, quando convergem na superfície textual, resultam em escritos de rara qualidade; reconhecê-la é uma forma de render preito aos grandes nomes da literatura negra brasileira.
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