Escrever a raça e o gênero

Publicamos hoje textos de quatro das participantes da Oficina literária LetrasPretas: escrever a raça e o gênero, que realizamos na UERJ, no dia 8 de outubro.

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Inquérito

por Bruna Morelli

Quando acordei ontem pela manhã, era branca.
Mirei minha pele clara no espelho e saí às ruas.
Passei despercebida pelos guardas no trem,
andei sem atrair olhares pelas ruas da Central.

Quando acordei hoje de manhã, era negra.
Mirei minha pele sombria no espelho e saí às ruas.
Os seguranças me pararam ao andar de trem,
hoje eu atraí olhares pelas ruas da Central.

Subir a ladeira mal iluminada da minha rua
nunca foi tão difícil quanto hoje,
enquanto observava os vizinhos brancos
encolherem ao meu passo.

Quando acordar amanhã,
passarei despercebida ao andar de trem?

Sou um produto das raças,
tipicamente brasileira.
Parte de mim é privilégio
e a outra parte são os ecos dos navios negreiros.

Quem sou eu?

Sobre a autora:
DSC_0135“Estudante de letras pela UERJ nas horas vagas, irmã em tempo integral, apaixonada por Harry Potter e eternamente exausta. A ovelha colorida da família que permanece em um contínuo estado especulativo, faço da literatura minha válvula de escape e da fotografia minha obsessão favorita.”

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Criados a leite e pera

por Cristiane Fernandes

Era uma tarde de sábado, num fim de semana qualquer, meu então namorado me contou que recebeu a proposta de um amigo em comum para irmos ao samba no morro Dona Marta, logo após a criação das UPPs, dava uma “segurança” para muitos, lembrei da ocasião em que estive lá e de uma sensação incômoda, um desconforto que havia ficado na minha memória emocional, eu não sabia bem do que se tratava, mas em resposta ao que senti disse, imediatamente, um tanto aborrecida: “Não, eu não vou lá, principalmente para levar o fulano e sua namorada confortavelmente de carro, pois a amada dele não pode andar de ônibus, esse convite tem motivo” e logo reafirmei “não vou mesmo”. Até então não entendia bem o que eu senti e posteriormente, conversando com o tal amigo, fui julgada, me chamou de “criada a leite e pera”. Não tive resposta imediata para como fui denominada, porém mais tarde pude entender meu desconforto e formular minha resposta, que talvez nunca será ouvida, mas pode ser escrita. O recado começa assim: “Você, rapaz não negro dos olhos verdes, com sua namorada também branca de olhos verdes, vocês que são o padrão dessa sociedade envolvente, fale-me mais sobre ser ‘criados a leite e pera’, pois diante das vielas da favela senti meu corpo preto em constante perigo junto aos meus, senti que aquelas armas abaixadas sempre teriam alvos certos e não seriam vocês, pude ver que o meu povo estava na mira para gente como você sambar, as crianças servindo de atração para os gringos, que com olhar de piedade lhes davam algumas moedas, as mães que vendiam bebidas e comidas para arrecadar dinheiro para sua existência. Muito tarde entendi que aquela cena me trazia uma memória da infância, do bairro pobre em que nasci, na Baixada, de ser alvo, de ser um corpo-alvo, fale-me mais sobre como é usufruir o lazer à custa de quem não tem outra opção, senão proporcioná-lo a vocês, talvez quando conseguir me contar sobre suas experiências poderemos definir quem foi mesmo ‘criado a leite e pera’.”

Sobre a autora:
IMG-20180305-WA0076“Sou Cristiane Fernandes, tenho 28 anos, mulher, preta, nasci em Belford Roxo e passei parte de minha vida lá. Sou professora de Química e estudo relações étnico-raciais, tenho encanto por tudo que envolve humanidades, costumo brincar que sou uma humana exata, rs.”

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Para os dias que seguem

por Gisele Rose

Para os dias que seguem
Resistência terei
Para os medos que me cercam
Coragem terei
Para as angústias que me afligem
Esperança terei
Para as lutas que surgirem
Força terei
Para os que ficarem ao meu lado
Amor darei

Sobre a autora:
gisGisele Rose: mulher, negra, feminista, nascida no subúrbio do Rio de Janeiro. Pós-graduada em Ciências Sociais aplicadas (IPPUR-UFRJ) e Mestranda em Relações étnico-raciais (CEFET-RJ). Professora de Filosofia na SEEDUC-RJ. Filiada à Associação Brasileira de Pesquisadores Negros – ABPN. Coordenadora do Projeto Fun -L’ Agbára.

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Hoje eu me sinto como há 20 anos, quando a minha professora de alfabetização começou a me ensinar a escrever. Estou novamente sentada com um papel e lápis na mão e não sei como começar, não sei quais palavras escrever e nem como as escrever, mas ninguém as sabe, só eu.
Esse texto, por exemplo, cada palavra escrita precisou de um esforço grande para ser reproduzida aqui, para cada significante um desbloqueio foi feito. Tudo demonstra que o mundo de escritora não foi pensado para mim.
Depois de muitas tentativas e buscas por formas e jeitos de escrever bem, entendi que toda escrita está para além de regras gramaticais e de formatos, a escrita tem muitas funções, a minha escrita é meu espaço de existência e resistência. Aprendi a viver, sobreviver e a me imortalizar em outros espaços, que não o do papel e caneta.
Talvez seja isso que está me bloqueando, é que a minha escrita esteja num espaço que não cabe no “beabá”. Então o jeito é fazer que o “beabá” caiba na minha escrita e não ao contrário, como estava tentando fazer até agora.

Sobre a autora:
FB_IMG_1543059057875Luziara Novaes, moradora do subúrbio do carioca, pedagoga pela Universidade Federal Rural de Rio de Janeiro. Mestranda pelo Programa Pós- Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares. Professora de Município do Rio de Janeiro.

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