O Feminismo, por Chimamanda

Chimamanda Ngozi Adichie. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

84747116Sejamos todos feministas é um ensaio que surgiu a partir da adaptação de uma palestra ministrada em 2012 por Chimamanda Ngozi Adichie – escritora nigeriana, autora dos romances Meio sol amarelo (2008), Hibisco roxo (2011) e Americanah (2014). Sejamos todos feministas é uma obra bem concisa, que de maneira alguma deixa a desejar quando desenvolve a discussão já proposta no título. O “todos”, que na língua portuguesa inclui gramaticalmente ambos os gêneros, pode ser visto como uma ferramenta para trazer essa responsabilidade de luta por uma sociedade igualitária também para os homens, atingidos por padrões de masculinidade que se mostram deveras nocivos na formação desses sujeitos. Nos faz pensar no problema de gênero como sendo um problema social, que deveria ser enfrentado como todos os outros tipos de opressões; é dizer: a luta contra o sexismo, racismo, homofobia, transfobia não deve ser vista como uma causa exclusiva dos sujeitos que sofrem essas discriminações – na verdade, ela é de responsabilidade de todas e todos.

O ensaio começa com a autora recordando a primeira vez em que foi chamada de “feminista”. Foi em 1991, quando tinha 14 anos, por seu amigo de infância – já falecido – Okoloma. Ela nos revela o tom pejorativo que percebeu na frase “Sabe de uma coisa? Você é feminista!” – termo que, até então, lhe era desconhecido, mas que dito com tal entonação lhe soava como sendo ruim. Adichie não revelou ao amigo que desconhecia o termo; em vez disso, foi para casa buscar seu significado no dicionário. Neste momento, ela corta a narração e começa a relatar os micro/macro machismos vivenciados por ela e por conhecidas, levantando algumas reflexões acerca dessas experiências cotidianas que são verdadeiros monstros para nós, mulheres.

Debrucemo-nos sobre a figura de Okoloma – que, apesar de ser um sujeito individual, com suas muitas particularidades, representa a voz de um coletivo: a voz de uma sociedade machista, governada por homens que não estão, minimamente, interessados em rever seus privilégios. Todas nós já ouvimos as vozes de Okolomas! Daí, pensamos como se dá a estratégia patriarcal para manter essa estrutura tal como está, e percebemos que o primeiro passo foi criar esse ar negativo ao redor do termo “feminista”, criando infindáveis estereótipos com intuito de promover uma resistência social quanto a essa questão; quem nunca ouviu que as feministas não passam de mulheres mal-amadas? Chimamanda, ao longo da narrativa, vai expondo como esses processos de estereotipização se deram em sua vida:

“Enquanto eu divulgava o livro na Nigéria, um jornalista […] comentou que estavam dizendo que meu livro era feminista. Seu conselho era que eu nunca, me intitulasse feminista, já que as feministas são mulheres infelizes que não conseguem arranjar marido. […] Mais tarde, uma professora universitária nigeriana veio me dizer que o feminismo não fazia parte da nossa cultura, que era antiafricano e que, se eu me considerava feminista, era porque havia sido corrompida pelos livros ocidentais […]”

É interessante pensar nos enunciadores descritos acima: pessoas que ocupam um lugar privilegiado socialmente, que foram agraciadas com o privilégio do conhecimento sistematizado e que, ainda assim, cooperam com a proliferação de ideias distorcidas do movimento, nos levando, diretamente, até as pessoas que estão na base, na margem da sociedade, a quem foi negado a escolarização – nos fazendo pensar: como a compreensão deste termo tem chegado lá? Tendo a pensar que todos aqueles que tiveram a oportunidade de construir uma consciência crítica acerca das diferentes desigualdades que nos assolam, mas que insistem em demonizar o feminismo, foram acometidos de um mau-caratismo único.

Adichie aponta as diferenças biológicas existentes entre homens e mulheres, mas que de forma alguma servem para fomentar a desigualdade entre ambos. Ela fala sobre os tempos em que a força física era uma das principais ferramentas de trabalho, mas observa que isso não funciona mais para pautar e direcionar a sociedade atual. A escritora nigeriana chega a ironizar a ideia de que, talvez, as mulheres nasçam com o tal gene para cozinhar e, então, ela levanta um sério problema: “[…] mais aí lembrei que os cozinheiros mais famosos do mundo – que recebem o título pomposo de ‘chef’ – são, em sua maioria, homens”, nos fazendo lembrar da Wangari Maathai – ativista política queniana, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 2004 pelo seu trabalho humanitário, e o Conservation Scientist Award da Univesidade de Columbia no mesmo ano – , parafraseada anteriormente por Chimamanda, que afirma que quanto mais perto do topo chegamos, menos mulheres encontramos por lá. Há uma urgência em se discutir que esses papéis separados de acordo com os gêneros não são inerentes aos sujeitos, mas sim condicionamentos sociais há muito estabelecidos. Se fomos condicionados a viver numa sociedade em que cozinhar é uma tarefa da mulher, podemos pensar em condicionamentos de cooperação, em que cozinhar seja tarefa de ambos, já que comer sim é algo da natureza humana.

É apresentado também o fator cultura como mantenedor dessa estrutura machista; justifica-se a subordinação feminina como algo cultural e que por isso deve ser mantido. A autora contra-argumenta afirmando que “a cultura está sempre em transformação” e que, assim sendo, é necessário que repensemos nossas práticas, visando alcançar as inquietações do sujeito moderno. Verdade é que romantizamos tudo, e com a percepção de “cultura” não seria distinto. Fui até uma concepção de cultura apresentada por Walter Benjamin, filósofo alemão, em seu texto Sobre o conceito de história, no qual ele afirma que “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão de cultura”. Essa reflexão nos faz perceber – na verdade, muitas de nós sentimos na pele – toda exclusão, toda a dor e todo o sangue que estão sob muitas culturas, o que nos faz considerar inaceitável a sua perpetuação, pois custa um preço que não mais estamos dispostas a pagar. Sobre essa cultura excludente, Chimamanda pondera:

“A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte dessa nossa cultura, então temos que mudar essa cultura.”

Aquele corte na narrativa dito no início do texto, é retomado ao final; ela nos traz a definição encontrada no dicionário – “Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica entre os sexos”. Penso que a apresentação desse conceito só ao final da obra é um mecanismo de quebra dos estereótipos apresentados ao longo da narrativa, como quem diz: “não é bem o que dizem por aí, não tenha medo, nós, mulheres, só queremos essas coisas que estão postas aqui. Senta, precisamos conversar!”.

Às vezes, é exaustivo demais explicar o óbvio; explicar que o feminismo não é o oposto do machismo – mas acredito que uma boa maneira de se manter mais firme nessas explicações é lembrar que essas obviedades são resultado de um caminho que nós percorremos para chegar a essas reflexões; logo, o óbvio só se faz óbvio para nós mesmas, e não há outro caminho para construir uma sociedade igualitária que não passe pela desconstrução de estereótipos sobre o feminismo que foram construídos ao longo do tempo, com o intuito de quebrar, ou melhor, retardar a nossa revolução.

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