“Leite do peito”: contos de Geni Guimarães

Geni Guimarães. Leite do peito. Maza Edições, 2001.

9798571601887Reunindo 12 contos, o livro Leite do peito mostra uma escrita muito pessoal de Geni Guimarães. Ao contrário do que eu imaginava, os contos vão transcorrendo sob a ótica de uma única personagem, e dessa forma acompanhamos o seu crescimento, a sua família e suas tradições.

O primeiro conto narra o momento em que acontece o desligamento do seio materno para ceder lugar ao irmão mais novo, que estava a caminho. Esse momento marca um processo de amadurecimento da personagem, pois a cada conto ela passa a perceber melhor a realidade que a cerca.

Acompanhamos as relações familiares, os momentos dedicados à tradição muito marcantes na vida de Geni, seu relacionamento com os irmãos e os ensinamentos por ela recebidos, muitas vezes pautados em um cristianismo inquestionável – analfabetos, seus pais não ousariam questionar as escrituras sagradas; qualquer coisa que se parecesse com uma blasfêmia estava fora de cogitação. Por isso, ao questionar o pai sobre a cor de Deus, ele responde que é branco, como na bíblia. Isso explicita a educação religiosa que seus pais tiveram, moldadora, que restringe o pensamento e que os coloca em seus devidos lugares, sem espaços para almejar o diferente.

Os contos que mais me marcaram se intitulam “Tempos escolares”, “Metamorfose” e “Alicerce”, onde vemos o racismo agir na vida da personagem forma mais evidente. A frieza e indiferença da professora frente a uma aluna negra; a exaltação da Princesa Isabel como redentora dos escravizados; o sentimento de inutilidade e vergonha causado em Geni pela ocultação da verdadeira história de seus antepassados, perpetuando assim a ideia de subalternidade do povo preto; o olhar de pena dos seus amigos – todas essas cenas são dolorosamente descritas nos dois primeiros contos, evidenciando o seu contato direto com o racismo.

A compreensão desvalia. Não era como o leite que, derramado, passa-se um pano sobre e pronto.
Era sangue. Quem poderia devolvê-lo…Vida?
Que se enxugasse o fino rio a correr mansamente. Mas como estancá-lo lá dentro, onde a ferida aberta era um silêncio todo meu, dor sem parceria.
(“Metamorfose”)

Como contraponto a esses momentos tão doídos, vem o desejo: “quero ser professora”. Geni conta ao pai o desejo, recebendo prontamente apoio:

– Vou ser professora – falei num sopro.
Meu pai olhou-me, como se tivesse ouvido blasfêmia.
– Ah! Se desse certo…Nem que fosse pra mim morrer no cabo da enxada – olhou-me com ar de consolo – Bem que inteligência não te falta.
– É, pai. Eu vou ser professora.
Queria que ele se esquecesse das durezas da vida.
(“Alicerce”)

Um caminho que não foi fácil seguir, mas que Geni percorreu e continuou a percorrer.

Leite do peito é um livro belíssimo, com ilustrações de Regina Miranda que abrilhantam ainda mais a escrita da autora. Uma leitura valiosa, que traz uma história de vida sofrida, bela e dolorosa, mas incrivelmente rica em seus ensinamentos.

Sobre a autora convidada

Cinthia Martiniano é graduanda em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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