Por que eu, mulher negra, celebro: Lula livre!

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Foto: Rodolfo Buhrer/Reuters

Nunca vou me esquecer da vez em que eu conversava com a minha avó, mulher negra e nordestina, sobre o Lula. Eu perguntei por que ela, que mal falava sobre qualquer coisa relativa à política, era tão apegada à figura do Lula. Ela me respondeu “Foi graças a ele, minha filha, que lá em casa pela primeira vez teve carne na mesa”. Minha avó veio do Rio Grande do Norte para o Rio de Janeiro junto com o marido para fugir da fome. Ela havia tido 16 filhos; desses, apenas 8 sobreviveram. Os outros morreram ainda bebês nas condições desumanas de miséria em que ela viveu junto com o marido, nos anos 40. Nem ela e nem o marido tiveram acesso aos estudos; mesmo os filhos dela tiveram pouco acesso à escola durante a infância. Naquela época, escola pública não era lugar de pobre. Meu pai começou a trabalhar com 12 anos de idade, pegando o trem de Vila Inhomirim, de madrugada, rumo à Central do Brasil para distribuir jornais em bancas.

Se as políticas públicas implementadas no governo Lula beneficiaram a população pobre brasileira, devemos lembrar que grande parte dessa população é de pessoas negras. Pessoas que, como minha avó, viveram uma realidade marcada pela fome, pela desigualdade social e falta de oportunidade na vida. Não romantizo o Lula. Não o vejo como um político inocente, enrolado na bandeira da honestidade. O vejo como ser humano que é, cheio de ambiguidades e contradições, que aliás são características de qualquer ser humano. Mas não é novidade para ninguém, que Lula, assim como Dilma, foram réus, não de crimes políticos, mas se tornaram simbolicamente culpados de um governo que teve a audácia de melhorar um pouco que seja a condição degradante de milhares de brasileiros desse país. Para fazer isso, eu acredito e sei que o governo Lula fez escolhas e alianças erradas; mas sei também que, sem essas alianças, ele sequer teria chegado a se tornar presidente do nosso país.

Penso em como seria a minha vida, e a vida de milhares de jovens negros, sem o acesso a cotas e às bolsas de estudos. Na minha família, por parte de pai, eu e a minha irmã somos as únicas que tiveram acesso ao ensino superior. Por mais que as cotas tenham sido implementadas desde antes do governo petista, devemos lembrar que foi durante o mandato de Lula que surgiu um maior apoio a várias iniciativas visando o acesso de jovens negros e de pobres às universidades; foi durante o governo dele também que ocorreu a implementação de outras políticas que priorizaram a tentativa de sanar a fome, que era uma realidade de muitas famílias brasileiras (luta que ainda não terminou). Coincidentemente, foi no período da grande crise do PT e o golpe contra Dilma que ações afirmativas como as cotas de ingresso nas universidades públicas e o Bolsa Família passam a ser intensificadas de forma mais intensa por uma onda de conservadorismo hipócrita.

Se minha avó, que era nordestina, lembra do Lula como aquele que colocou comida na mesa dela, o que para ela significava um mínimo de dignidade, na minha opinião, o governo Lula assegurou algo com valor inestimável: a oportunidade de acesso ao conhecimento. É através desse conhecimento, dos estudos e da luta diária em uma sociedade que é ainda estruturalmente racista que, em um futuro não tão distante, veremos um negro presidente no Brasil. Utopia minha? Talvez. Mas eu penso que, pelo menos à minha geração, é permitido sonhar. Não vejo o Lula como um homem branco salvador da população brasileira, mas o vejo como o símbolo de resistência diante das forças obscuras que insistem em impor “ordem e progresso” no país, com base na exploração e degradação dos que estão abaixo nessa pirâmide social. No dia 8 de novembro de 2019, eu e muitos amigos nos emocionamos com a libertação do Lula. Fico imaginando o que minha avó diria — estivesse viva hoje — sobre o que tem sido a trajetória desse homem, que tem sido amado por muitos e convenientemente odiado por outros.

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