Jesus da gente é um menino preto favelado

mangueira-475x600A verdade vos fará livre é o nome do samba-enredo deste ano da Estação Primeira de Mangueira. A Campeã do carnaval 2019, que levantou a Sapucaí com o samba-enredo História pra ninar gente grande, este ano promete ainda mais, ao levar para o sambódromo a figura de um Jesus periférico, negro, o “Jesus da gente”, como cantam eles. A construção dessa figura neste samba-enredo dá-se de maneira muito distanciada da construção que foi/é estabelecida socialmente; basta lembrarmos, por exemplo, como eram os atores que interpretaram Jesus ao longo da história da cinegrafia mundial: eram, majoritariamente, brancos com traços europeus – haja vista o ator norte -americano Jim Caviezel, que interpretou Jesus no filme A Paixão de Cristo. O Jesus de Ariano Suassuna, em O Auto da Compadecida, é exceção para confirmar a regra.

A imersão nesse universo religioso dá-se já no título, que tem como ferramenta a intertextualidade para estabelecer relação com um texto bíblico – “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” – fazendo com que, de imediato, sejamos levadas a reconstruir a imagem de um Cristo há muito distanciado da população mais carente e necessitada; um Cristo que não parece ser aquele que, segundo a tradição, andou ao lado dos pobres e de uma prostituta; um Cristo que parece nunca ter dito que seria mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, que um rico entrar no céu; um Cristo que alimenta o ódio e dissemina a intolerância, seja ela qual for; por fim, um Cristo branco, porque em uma sociedade fundamentalmente racista é inconcebível pensar que a maior representação da fé cristã mundial possa ter sido um homem negro. Aliás, especialistas do mundo afora, que se debruçam em suas pesquisas na reconstituição da aparência de Jesus, falam da altíssima probabilidade de ele não ter sido branco, ou seja, esse Jesus cantado pela Mangueira pode estar muito mais próximo da figura real de Jesus do que a imagem construída pela narrativa mundial. A historiadora e professora neozelandesa Joan E. Taylor, autora do livro Como Jesus era?, afirma: “Os judeus da época eram biologicamente semelhantes aos judeus iraquianos de hoje em dia. Assim, acredito que ele tinha cabelos de castanho-escuros a pretos, olhos castanhos, pele morena. Um homem típico do Oriente Médio”.

É interessante perceber a forma como é produzida essa reconstrução da imagem de Jesus no samba-enredo, porque ela se dá entorno da primeira pessoa; é dizer que essa reconstrução é feita pelo próprio Jesus – que, diante de tanta arbitrariedade na constituição, fixação e propagação de sua figura, percebeu a necessidade de cantar a si para restabelecer sua essência, de modo que o samba já inicia com a marcação dessa voz: “Eu sou da Estação Primeira de Nazaré”. A propósito, a partir deste verso percebemos também de onde vem esse Jesus: da comunidade da Mangueira, lugar que, como todas as outras comunidades periféricas do país, é preterido pelos governantes que, ironicamente, “governam” em nome deste divino – mas não este que canta o samba-enredo, é outro, é um Jesus que favorece os mais ricos e explora os mais necessitados; um Jesus que também se revolta quando vê que aqueles que são colocados numa posição de subserviência têm a possibilidade de conhecer a Disneylândia, por exemplo.

A figura de Jesus, nesses versos, é constituída por uma mistura de corpos que são depreciados e objetificados socialmente; a Estação canta, ao som da bateria: “Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”, uma maneira de subverter o ideário racista e machista ao trazer a figura daquele que eles dizem adorar, metamorfoseado naqueles que eles mais odeiam. Essa mesma lógica de subversão foi usada por Elza Soares, na canção Deus há de ser, em que a mulher do fim do mundo canta “Deus é mãe/ E todas as ciências femininas”, o que também serve para estabelecer uma aproximação direta entre Jesus/Deus e esses corpos subalternizados.

Quando esse eu-lírico canta “Minha mãe é Maria das Dores Brasil”, instantaneamente, me lembro das inúmeras mães que perdem seus filhos para a violência nas comunidades cariocas; mães que, desde sempre, ensinaram a seus filhos maneiras de sobreviver dentro desse Estado genocida: “mesmo que esteja com medo, não corra!”, “nada de movimentos brutos e mãos sempre acima da cabeça”, “pegou a identidade? Acho melhor deixar esse boné em casa” – e, no fim, nada disso é garantia. Lembram da menina Ághata Félix, de 8 anos, que foi assassinada pela PM, em setembro do ano passado, no Complexo do Alemão, quando voltava da escola? Ou do Marcos Vinicius, de 14 anos, que, baleado no Complexo da Maré quando ia para escola, disse à mãe antes de morrer: “Mãe, eles não viram que eu tava de uniforme?” – essa frase deve soar todos os dias no ouvido dessa mãe, dessa Maria das Dores. Uma dor inominável, causada por um Estado assassino e que usa o nome de Jesus para justificar todas as suas barbaridades. São, como canta a nossa Mangueira, “Os profetas da intolerância”, que com esses atos crucificam Jesus de novo e de novo e de novo, numa espécie de círculo vicioso.

É possível perceber também como esse Jesus mangueirense repudia a guerra e o poder bélico, afinal, ele nos canta: “favela pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem Messias de arma na mão”. Há uma ambiguidade explícita nessa última parte, em que “Messias” tanto pode estar estabelecendo uma relação com o próprio Jesus – recebido como o esperado Messias por aqueles que o seguiram – como pode ser uma crítica direta ao, infelizmente, Presidente da República, Jair Messias, que, além de ser visto por muitos como o salvador da pátria enviado por Deus, é declaradamente a favor do porte de armas e tem um discurso marcado por todos os tipos de intolerâncias, mas sempre reafirma seu cristianismo e enfia o nome de Cristo em suas falas que escorrem ódio. E então, vem o Jesus da gente para nos lembrar quem, de fato, ele é: “Enxugo o suor de quem desce e sobe a ladeira/ Me encontro no amor que não encontra fronteira/ Procura por mim nas fileiras contra a opressão”.

Para além dessas incongruências que circundam a figura de Cristo, há também uma monopolização quanto a essa representação – tanto que foi organizado um abaixo-assinado por uma associação católica de São Paulo, que considerou o samba uma blasfêmia –, porque aos olhos desses que mais parecem donos dessa figura cristã, levá-la para avenida, uma festa carnal, seria altamente desrespeitoso. E daí, o primeiro ponto a ser comentado é que, nessa tsunami conservadora na qual imerge o mundo inteiro, o não reconhecimento do carnaval como arte, como um grande constituinte de nossa cultura nacional, fica ainda mais em evidência. Ora, Jesus já foi representado em filmes, quadros, teatro e eu pergunto: por que não na Sapucaí? Outra: qual o problema desta figura ser ressignificada, afinal, a imagem firmada mundialmente passou por vários filtros subjetivos até que se constituísse no que vemos hoje, e decerto esses filtros não foram femininos, tampouco negros ou indígenas. A verde e rosa, já ciente do que estaria por vir, se protege com esse refrão cantado por Jesus da Estação Primeira:

Mangueira
Samba teu samba é um reza
Pela força que ele tem
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também.

 

E eu fico daqui só vibrando e sentindo o cheiro da vigésima primeira vitória se aproximando!

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