“Alma Cativa” nos ensina a sermos livres

Margarete Carvalho. Alma Cativa. Mnira,2019.

Alma Cativa, romance da escritora baiana Margarete Carvalho, convida a leitora a refletir sobre a força e a potência da ancestralidade negra. É uma literatura feita para que pessoas negras entendam que são capazes de criar as suas próprias narrativas, bem como que sua humanidade não depende de outros; que negras e negros são sujeitos e donos de seu próprio tempo. Não há como abordar a obra sem mencionar a sua criadora, nascida em Salvador e mestra em Letras. Margarete atua como professora na rede básica de ensino e, com o intuito de resgatar a sua memória ancestral, escreve o que o processo colonizatório fez questão de apagar; escreve sobre perspectivas de vida, anseios e dá voz a corpos e identidades que continuam sendo esquecidos: mulheres e homossexuais.

A narrativa apresenta a história do povo negro em seu tempo escravizado; Amò Dúdú é a protagonista, que foi modelada a partir do barro preto por sua criadora, Arìnnà Àjò. Amò Dúdú tem o poder de viajar entre as cidades do Entrelugares, mundo ficcional da narrativa; e, junto de personagens como Pérola e Arìnnà Àjo, tenta impedir que o antagonista, Caravelas, consiga destruir a história do povo negro. Amò Dúdú, ora representado por uma figura masculina, ora por uma figura feminina, é um ser místico que tem por função cuidar da memória, da ancestralidade e da cultura de seu povo para que as intenções maliciosas de Dimas Caravelas não destruam a Cidade Mediterrânea, que resguarda os conhecimentos científicos. Caravelas, como o vilão da trama, tem por objetivo extinguir quaisquer vestígios que demonstrem que um povo de origem étnica diferente da sua é capaz de construir qualquer coisa – seja um sentimento afetivo, sejam construções como os Ilês.

A história de Alma Cativa trabalha com a ancestralidade de um povo, ou seja, não é apenas uma história sobre a vida de Amò Dúdú ou de qualquer outro personagem. É uma narrativa que mostra que agora a história é contada por aqueles que uma vez foram lidos como “escravos”, mas que na atualidade são denominados “escravizados”; não são os que deixaram corromper-se, mas foram corrompidos pelas micro e macroviolências da colonização. A partir de agora, a história não é contada pelos ditos dominantes “civilizados”, mas sim pelos frutos da resistência: as próprias pretas e os próprios pretos.

Os personagens negros, que em geral são vistos como os que têm a alteridade deslegitimada, são representados por figuras como Amò Dúdú, que tem a sua história e a de seu povo contadas pela perspectiva de que sujeitos negros têm sentimentos, historicidade e conhecimentos; que são sujeitos de poder, capazes de reverberar o amor enquanto comunidade. É interessante como os corpos desses sujeitos estão dispostos nas cenas: corpos que amam, corpos que são violados pelo sistema, corpos que são abusados, corpos que são mortos, corpos que são criativos. Contudo, a autora não faz da escrita apenas um lugar de denúncia, mas também um lugar de afirmação para que fique evidente que seres negros são corpos, são vidas, e que mulheres negras são mulheres dotadas de subjetividade.

Ao longo da trama, é notória a complexidade, ou melhor, a variedade, do que é ser ou, em alguns momentos, não ser mulher. Um exemplo é Amò Dúdú, que tem a capacidade de ser homem ou mulher. A singularidade é figurada pela representação da mulher lésbica, da mulher mãe, da mulher filha, da não-mulher, dos afetos entre as mulheres na casa de banho turco – onde Pérola Negra, aquela que viaja pelas cidades com os mapas que estão dispostos em seu corpo, comungava das vozes e vivências de outras mulheres. Várias passagens demonstram a capacidade de transfiguração de Amò Dúdú, atravessando os gêneros – aludindo à sua capacidade de engravidar e menstruar ou à condição de trabalhador responsável por carregar as pedras cósmicas da Cidade do Pêndulo, por exemplo. Ser homem ou mulher é o que menos importa, como evidencia a personagem Omara Òmìnira, engenheira da liberdade, visto que não pode perder-se da própria cultura, da própria identidade.

Alma Cativa é um romance que não deixa de abordar as múltiplas dores de um povo, tais como o violento assassino que faz questão de acertar o seio de Amò Dúdú como forma de reduzir a feminilidade de um corpo que, depois de morto, não é visto como um corpo feminino. Pelo contrário, é visto como um corpo promíscuo e criminoso; é visto como o corpo de Pedro dos Santos de Jesus, do dito “traficante”, como anunciado pelas mídias. Como também o corpo de Diva da Noite, o corpo de uma mulher lésbica que recorre à prostituição após ser expulsa de casa, aos 15 anos; o corpo de Obí Gbánja, que é presa por viver uma relação não-monogâmica e ser agredida de maneira verbal como uma destruidora de lares; o corpo de Pérola Negra, que, por causa das implicações de um padrão branco europeu, fica louca a ponto de parar em um manicômio.

Alma Cativa também é um romance que aborda, para além das tragédias já conhecidas, o amor. Em suma, a narrativa trabalha mais do que o fator “resistência”. E, sim: como viver fora das garras da branquitude? A resposta é defendida através de toda narrativa: a resposta é que o sentimento de comunidade e a subjetividade estão dentro de nós.

Um comentário em ““Alma Cativa” nos ensina a sermos livres

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  1. Eu estou impactada com o texto de Vitoria Machado que me parece que devorou o livro esfomeada. Ela está com ele inteiro na cabeça. Como eu já me distanciei da história e estou em outra, foi importante ler a resenha tão bem escrita e rememorar o percurso de Amò Dùdú. Essa personagem me acompanhou durante todo o processo de escrita e a sensação que tenho é que ela existe. De repente ela foi um espírito inspirador que sentou-se à mesa comigo para escrever. Rsrsr Gratidão ao projeto Letras Pretas e fico honrada com o texto de @pretalirica. Abraços da autora

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