Radicalidade: uma responsabilidade pra já

Ainda ressoam as experiências que vivenciei no XVII Congresso Internacional ABRALIC, realizado em meados de julho de 2023, em Salvador. Registrei-as no calor das emoções, em uma espécie de diário íntimo, que dividido aqui com você, leitora-irmã. São reflexões momentâneas que espero ampliar quando o momento finalmente estiver na minha caixa de lembranças.

Seria minha primeira participação na ABRALIC, tanto como ouvinte quanto como comunicadora, com um trabalho sobre minha pesquisa no Doutorado. Com tema “A literatura Comparada e a invenção de um mundo comum”, dentre tantas atividades do meu interesse, na programação da ABRALIC 2023 constava a Conferência de Abertura “O radical projeto estético, político e ético das mulheres negras para a invenção de um mundo comum”, com a participação da Ministra das Relações Étnico Raciais, Anielle Franco, e a escritora Conceição Evaristo, cabendo a mediação à professora Florentina de Souza (UFBA). Desde esta conferência, notei que o encaminhamento dado pela intelectualidade negra feminina para o congresso seria pelo radicalismo e fiquei bastante animada. Meu entusiasmo se acentuou com a mesa-redonda “Abolicionismo. Feminismo. Já?”, pois contaria com a presença das professoras e ativistas Angela Davis (Universidade da Califórnia, Santa Cruz), Gina Dent (Universidade da Califórnia, Santa Cruz) e Denise Carrascosa (UFBA), com mediação da professora Feibriss Casilhas (UFBA).

Porém, faltando poucos dias para o congresso, recebi por e-mail um aviso da organização da ABRALIC sobre limitação de espaço e necessidade de segurança, que acarretariam a abertura de formulário de inscrição às 10h da manhã do dia 07/07, uma sexta-feira, para apenas 240 pessoas participarem da sessão presencial. No dia da inscrição, estando em breve pausa no trabalho, olhei o celular exatamente às 10h, entrei no site e consegui me inscrever, em dois minutos já não haviam vagas. E a mesa seria transmitida pela TV UFBA (adianto que está disponível no YouTube, nos canais da ABRALIC e da TV UFBA, embora com qualidade sonora ruim).

Finalmente, chegou o esperado dia. Com esperança de conseguir a assinatura de Angela Davis, havia levado na mala Estarão as prisões obsoletas?, livro lido quando participei em 2009 do Grupo de Estudos “Graciliano Ramos: Leituras e Escritas do Cárcere”, fundado pelo meu orientador no Mestrado pela UFRRJ, professor Marcos Pasche. Levei também o livro Os Panteras negras: uma introdução, que tem um capítulo dedicado à participação de Davis no movimento e que culminou com sua prisão, escrito pelo nosso amigo e coordenador do LetrasPretas, Henrique Marques Samyn, A mesa com Angela Davis seria em um campus da faculdade de Direito da UFBA, localizado em outro bairro de Salvador. Ao chegar, encontrei uma fila de mulheres negras entusiasmadas, logo reconheci a deputada estadual Renata Souza e fui cumprimentá-la. Encontrei também Bruna Santiago, pesquisadora e escritora que já participou de atividades do grupo LetrasPretas, que não estava inscrita, mas que tentaria assistir. Faço um parêntese para incentivar que você corra à rede social de Bruna e veja seu livro, O pensamento de Angela Davis, sendo entregue em mãos para Angela Davis no dia anterior, na cerimônia de abertura da ABRALIC.

No auditório lotado, estavam à venda Feminismo. Abolicionismo. Já., lançado ao lado da coletânea Firminas em Fuga, performance fotopoética de artistas encarceradas. Como abertura, apresentação musical afrobaiana e documentário sobre o projeto “Corpos Indóceis e Mentes Livres – Organização de Mulheres Negras em Defesa das Vidas de Pessoas Encarceradas (2010-2023)”, coordenado pela professora Denise Carrascosa. Logo em seguida, foram apresentadas as mulheres a comporem a mesa. E as pessoas que ficaram do lado de fora conseguiram entrar no auditório, sentando-se inclusive no chão.

Quando Denise Carrascosa pegou o microfone, direcionou à plateia uma pergunta, sem rodeios: “qual a nossa responsabilidade com a liberdade das mulheres negras?”; dizendo em seguida que Angela Davis não iria autografar nenhum livro ali, pois a programação do dia seria, ao encerrarem a mesa, partirem rumo à Penitenciária de Salvador, onde fariam também o lançamento desses dois livros junto das mulheres sentenciadas, algumas delas autoras da coletânea fotopoética. Provavelmente eu não fui a única a experimentar um sentimento de frustração. Preta leitora, confesso, eu era uma mistura de sentimentos: frustração, choque de realidade, admiração perplexa.

Se estávamos falando sobre a liberdade das mulheres negras, quem cumpre pena nos presídios femininos não são mulheres e negras? Sabemos que sim. E qual o nosso compromisso com elas? Imagine a confusão na minha cabeça. Enquanto o debate seguia, com Angela Davis e Gina Dent falando em inglês e eu sem entender nada do que elas falavam, repercutiam em mim as palavras que haviam acabado de serem ditas na minha língua.

Autora de diversos textos e palestras sobre o tema do encarceramento a partir de uma perspectiva feminista negra e abolicionista, professora de literatura na UFBA, doutora em crítica literária e cultural, tradutora, advogada, Denise Carrascosa coordena, há doze anos, o projeto de extensão “Corpos Indóceis e Mentes Livres”, trabalho de produção de oficinas de escrita literária, no Conjunto Penal Feminino do Complexo Penitenciário Lemos Brito, na Bahia. Junto com mulheres presas sentenciadas, construiu a Biblioteca Mentes Livres (2013), que possibilita a remição de pena pela leitura. Em sua rede social Denise escreveu: “Lançamos os foguetes a partir de duas bases estratégicas: a universidade pública federal e a penitenciária feminina, ambas neste estado da Bahia.”

Foi Denise quem escreveu “Uma sismografia de nossos feminismos abolicionistas”, prefácio à edição brasileira do livro Abolicionismo. Feminismo. Já., cujas orelha, quarta capa e tradução são assinadas, respectivamente, por Vilma Reis, Anielle Franco e Raquel de Souza. E foi Denise a organizadora da coletânea Firminas em fuga, pela Editora Ogums Toques Negros, com as autoras que estão em privação de liberdade e com um conselho editorial de mulheres negras escritoras e artistas.

Pouco depois vi que o jornal Brasil de Fato noticiou o lançamento dos livros na Penitenciária, com fotografias e as opiniões das intelectuais. Carrascosa diz: “nós estamos traçando rotas de fuga”. Davis frisa: “nosso feminismo é um feminismo das mulheres da classe trabalhadora, de mulheres negras, mulheres não brancas que estão envolvidas com o movimento ambientalista. Em outras palavras, não diz respeito a mulheres avançando profissionalmente de forma individual. Diz respeito a mudar a sociedade, criar um mundo melhor para todas as pessoas”. E Dent enfatiza: “nós começamos a trabalhar com esse abolicionismo como algo que é orientado para uma época futura e que é baseado em histórias passadas”.

E assim ecoam as primeiras conclusões. O momento, inicialmente, parecia pra mim o festivo encontro entre mulheres que eu admirava e a minha carreira acadêmica que progredia. E se tornou um encontrão (sinônimo de choque) com a vida, o corre, a carreira de muitas outras mulheres que, vivenciado o cárcere, muitas vezes privadas inclusive de direitos humanos essenciais, muitas vezes interrompidas, naquele momento avançavam, construindo rotas de fuga, através da palavra posta em liberdade.

Preta! Conceição Evaristo poetizou na “conjuração dos versos”: “nosso gritante verso se quer livre”. Agora ao reler esses versos, falarei em nós e lembrarei da pergunta: qual o nosso compromisso com o feminismo abolicionista? Quero pensar mais sobre o meu compromisso, sabe irmã? Trilhar essa rota de fuga em que radical é nosso projeto estético e político de dever ético para com todas as mulheres negras. E dito sem rodeios, chocando e numa boa. Assim avançamos para o tal mundo comum. Já é.

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