Entre o baile charme e a obrigatoriedade do salto

Texto dedicado a Nayara Matos e Roberta Domingos

Há uma coisa interessante em ser uma sobrevivente preta neste país: você nunca sabe o que é um hábito natural seu como indivíduo, ou como mais um sujeito no mundo, ou o que lá no fundo é algum tipo de herança herdada do nosso conhecido racismo cotidiano. Fico incomodada em dizer “nosso” racismo, pois o racismo é do branco, eles que deviam lidar com isso, não é mesmo? Só que infelizmente sabemos que quem lida com as eternas feridas mal cicatrizadas do nosso passado colonialista (esse espaço temporal que também é presente…) é a população preta brasileira.

Dadas essas primeiras considerações, eu, como mulher preta retinta, sempre tive como um de meus “hábitos”, ou uma espécie quase naturalizada de verdade, e sublinhe aqui a palavra NATURALIZADA, me sentir esteticamente… não muito bonita? Deslocada? Exótica? Falo do que já é conhecido das pretas: o velho desconforto com o cabelo crespo, a gengiva muito escurecida, a pele muito escura, lábios muito grossos. Em algum momento, todos esses traços são simbolicamente traços de empoderamento; no entanto, em outros momentos são traços que o outro usa para nos colocar no lugar da sensualidade NATURAL da nossa cor (aqui incluo nossos corpos), ou no lugar mesmo do desconforto. Veja bem, sejamos honestas: mesmo qualquer pesquisadora que seja especialista em questões étnico-raciais, até mesmo a leitora mais assídua de bell hooks, pode não escapar dessas contradições… eu poderia resumir tudo isso em: sempre me senti de alguma forma, em relação à minha aparência, inadequada. Um corpo inadequado de diferentes formas e em diferentes espaços. Lembro-me de um trecho do livro O olho mais azul em que Pecola, a menina preta protagonista do romance de Toni Morrison, fala sobre a sua experiência cotidiana no colégio. Sempre, ao chegar à escola, ela dizia algo sobre sentir como se as pessoas negras, diferentes das brancas, tivessem naturalmente uma espécie de véu invisível de feiura sobre si, algo que nem ela entendia. Qualquer preta que ler esse trecho da obra sabe exatamente o que isso significa, quando nos lembramos da escola.

Agora, corta para um fatídico sábado de agosto em 2023, quando recebo um convite de duas companheiras pretas – e vou denunciar os nomes: Nayara e Roberta. Elas me convidam (na verdade, uma intimação) a ir ao baile charme com elas em Madureira, aqui no Rio de Janeiro. Eu, estando de férias em um dos meus três empregos (risos de nervoso), finalmente chego ao tal baile… Corta de novo. Primeiro impacto: um espaço enorme, ocupado em massa por pessoas pretas. Na maioria, pessoas pretas retintas. Segundo impacto: não estou falando de quaisquer “pessoas pretas”; naquele escuro, em meio a cores neons e à música, havia preto e preta de todos os tipos, idades e estilos. Muitas tranças diferentes. Dreads lindíssimos. Todo tipo de corte black power. Eu nunca vi tanta gente NATURALMENTE linda. Para todos os lados. Uma coisa mágica. Na verdade, duas. Foi a primeira vez na minha vida em que me senti adequada a algum padrão de beleza; outra coisa é que, naquele espaço, os corpos se moviam no passinho como se fossem impulsionados por alguma espécie de energia ancestral – dava para sentir isso na pele, sentir no ar, nos olhares, no suor, na música. Outro impacto: estavam todos preocupados com a energia da dança que movia os seus corpos – não senti o medo de ser assediada ou apalpada por algum homem. NATURALMENTE, isso costuma acontecer frequentemente nas baladas que frequento (ou em qualquer lugar). Mais impacto: em que lugar estavam as pessoas brancas, naquele espaço? Eu diria até que seria constrangedor, ou inadequado (vejam só…) ser um branco naquele meio. A sensação que eu tive foi de ser transportada para outro tempo e realidade, em que o ideal de brancura foi um pesadelo que se esvaiu imediatamente através do meu contato com o que agora entendo ser a REAL NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO – que, até aquele momento, eu só tinha estudado no papel. No meio daquela dança, energia e corpos, mulheres negras não eram objetos sexuais. Elas pareciam integradas, quase que em uma equidade NATURAL, junto dos homens pretos, naqueles passinhos. Durante a madrugada no baile, uma de nossas companheiras se emocionou durante a dança. Sinceramente, eu estava ali com uma mistura de alegria, mas também de raiva. Ficava pensando: onde estava esse povo todo quando meninos brancos me perseguiam no colégio? Quando comecei a naturalizar essa inadequação do meu corpo, à medida que minhas amigas brancas começavam a namorar e eu não?

Corta para o dia de hoje. Eu estou vindo da terapia com minha psicóloga (preta). Estou no busão, 409, em direção à Lapa (meu país), lugar em que moro. Nesse momento, escrevendo esse texto com lápis e um papel, estou bem reflexiva, depois de outro impacto. Quase no fim da terapia, a psicóloga falava sobre a importância de eu rever os traumas e as consequências causados pelo ideal da brancura na minha vida acadêmica, quando de repente ela finaliza com a seguinte reflexão: abandona essa obrigatoriedade do uso do salto, que as pretas têm. Essa mania de punir o corpo como forma de se validar. Tomei uma porrada interna: de que salto ela estava falando? Salto da vida? Do que exatamente ela estava falando? Calculei… ela usou a palavra salto + punição do corpo, e me remeteu na hora a outro “hábito” NATURAL meu: só conseguir dar aula em escolas usando sapatos de salto, ou participar de eventos usando sapatos de salto. Parei para calcular quais eram meus argumentos quando as amigas (geralmente brancas e com tênis confortável) comentam: Camila, como você consegue passar 4 horas dando aula em pé de salto? A minha argumentação interna sempre foi… Ué… preciso do salto… é que não sou NATURALMENTE bonita… Me sinto melhor assim, não? Também me dá mais autoridade… Não se trata de parar de usar salto daqui em diante, mas…

Corta. Você que leu o texto, se for preta… Pega a visão.

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