Que heranças ficaram para a atual geração de mulheres negras?

Eliane Marques. Louças de família. Autêntica, 2023.

Louças de família é o quarto livro da escritora Eliane Marques, ganhadora dos prêmios Açorianos e o Minuano de Literatura. Além se de dedicar à escrita literária, Eliane é tradutora e coordenadora da editora Escola de Poesia Africana, voltada à publicação de autoras amefricanas no Brasil.

O romance Louças de família é narrado em primeira pessoa por Cuandu, mulher negra que, mesmo em ascensão social, recusa-se a ser classificada como parte da classe média brasileira, marcada pela hipocrisia do racismo. O romance parte da notícia da morte de Tia Eluma, parente da narradora. A partir do sentimento de culpa pelo distanciamento da tia, Cuandu reflete não apenas sobre o quanto vale a vida de uma mulher negra, mas também sobre a trajetória de sua família, temas ligados a ancestralidade e tudo o que atravessa a sua subjetividade enquanto mulher negra.

Engana-se quem pensa que o romance traz mais uma perspectiva de dor em relação aos desafios de mulheres negras e empregadas domésticas, como é o caso de Tia Eluma. De forma muito profunda e através de uma linguagem que se desloca entre lirismo, tempo psicológico e tentativa de apreensão do mundo pelas palavras, Louças de família nos apresenta um panorama muito complexo das indagações da narradora sobre como cada mulher negra carrega em si, o peso e a história de suas ancestrais. Nesse sentido, medos, traumas, experiências com o racismo, revolta, violência doméstica, ressentimento, solidão e saúde mental constituem temas elaborados pela escritora ao longo da trajetória na qual Cuandu resgata a memória de sua família e de si mesma.

Importante ressaltar que aqui o racismo não é tratado apenas como mais uma temática de um romance. Nessa narrativa, as questões étnico-raciais afetam modos de ser e estar no mundo de pessoas brancas e pretas, representadas pelas personagens. O interessante é que a narradora, que estabelece o tempo todo uma espécie de interlocução direta com uma leitora, evidencia que a história contada não tem como alvo qualquer público; logo, os efeitos e as reflexões provocadas por ela terão consequências viscerais em outras mulheres negras que se reconheçam tanto na história de Cuandu quanto nas das demais mulheres que têm suas histórias contadas pela perspectiva da narradora.

Tendo como ponto de partida a morte de Tia Eluma – que, na fala da narradora, através do trabalho doméstico viveu uma vida como serviçal das várias gerações de uma mesma família branca, Louças de família trata não somente da objetificação da vida de mulheres negras; mas, em uma narrativa que também é marcada por ironia e por uma crítica ácida, nos faz repensar quais são as histórias, personagens e narrativas que merecem, hoje, ser contadas e do ponto de vista de quem. Desse modo, Louças de família torna-se uma referência simbólica para aludir ao modo como as vidas de mulheres negras foram repassadas entre pessoas brancas como se fossem objetos de herança, e nos traz como dura reflexão pensar o que nos dias de hoje, mesmo com acesso a uma suposta ascensão social, fica de herança para uma nova geração de mulheres negras.

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