Inventando outras maneiras de educar crianças

Chimamanda Ngozi Adichie. Para educar crianças feministas: um manifesto. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

chimamanda“Seja uma pessoa completa”, “Ensine-lhe sobre a diferença”, “Ensine a ela que ‘papéis de gênero’ são totalmente absurdos” e “Ensine o gosto pelos livros”. Essas sugestões são algumas das oferecidas pela autora Chimamanda Ngozi Adichie no pequeno livro – mas poderoso – Para educar crianças feministas: um manifesto, lançado neste ano pela editora Companhia das Letras. Com algumas modificações, a obra reproduz a carta-resposta da escritora à indagação feita por uma amiga de infância sobre como criar a filha recém-nascida sob uma perspectiva feminista.
Nascida na Nigéria, em uma família de classe média, Chimamanda destaca-se como uma importante feminista e autora negra da literatura africana, tendo seus livros traduzidos em diversas línguas, entre eles Hibisco Roxo e Americanah. Tais características lhe possibilitam (re)pensar em suas obras temas relacionados ao feminismo, à negritude, ao racismo e à africanidade. A potência de seu discurso também pode ser vista em palestras, como nos TEDs intitulados O perigo de uma história única e Sejamos todos feministas, este último com trechos reproduzidos na música Flawless da cantora Beyoncé e publicado como livro.

Em Para educar crianças feministas, Adichie ressalta que é “moralmente urgente termos conversas honestas sobre outras maneiras de criar nossos filhos, na tentativa de preparar um mundo mais justo para mulheres e homens” (p. 8) – pode-se acrescentar: indígenas, lésbicas, gays, transgêneros. Ainda que demonstre, ao longo da obra, uma preocupação em ressaltar a necessidade de reconhecimento e respeito às diferenças, poucos são os exemplos dedicados às experiências de opressão vivenciadas por esses grupos e às formas de superá-las, o que pode estar associado aos limites do discurso epistolar, mais especificamente de uma carta com sugestões sobre como criar uma criança feminista. Desse modo, penso que cabe tomar o livro como um ponto de partida, pensando formas de preparar um mundo mais justo para todos.

Tal urgência advém de vários fatores. Um desses é o fato de que, quando se é designada, ao nascimento, como pertencendo ao gênero feminino, as possibilidades de escolha são reduzidas, uma vez que, nesse campo de opções, necessariamente se incluem a maternidade e o casamento. Apesar das muitas conquistas alcançadas pelas mulheres, essas alternativas ainda aparecem como destino a ser seguido. Eu mesma, quando completei 30 anos e dizia que não pensava em ser mãe, ouvi diversas vezes de familiares que não seria uma mulher completa, nem totalmente realizada. Cabe destacar que mesmo aquelas que decidem pela maternidade não se sentem necessariamente dessa forma. Um exemplo é o caso de Juliana Reis, que em um relato corajoso no Facebook, no ano passado, demonstrou que, embora amasse o filho, sua experiência como mãe estava sendo dolorosa e cansativa.

Na década de 1940, Simone de Beauvoir, com sua famosa frase da obra O segundo sexo – “não se nasce mulher, torna-se mulher”, já manifestava que os comportamentos associados às mulheres são historicamente construídos. Por isso que saber cozinhar, entre outras habilidades relacionadas ao universo feminino, “não é algo que vem pré-instalado na vagina” conforme aponta Chimamanda; afinal, como qualquer outra capacidade humana, “cozinhar se aprende” (p. 22). Pode-se inferir, assim, que os relacionados aos homens também são, tal como demonstra o documentário The Mask you live in, de 2015. Nele se aborda a ideia do que pode ser ou não associado ao universo masculino e como isso afeta psicologicamente os meninos nos Estados Unidos. Embora não cite explicitamente o pensamento da filósofa francesa, Chimamanda Adichie acaba dialogando com ele ao longo da carta. A autora africana recomenda, por exemplo, à amiga que nunca diga à filha para fazer ou deixar de fazer alguma coisa porque é menina; que maternidade e trabalho não são mutuamente excludentes, e que mulheres que dão conta de tudo inexistem.

Pensar a formação de crianças sob a ótica feminista é reconhecer pontos de contato nas diversas sociedades, como os mencionados acima, mas também perceber que essas crianças partem de experiências sociais, econômicas, culturais e raciais diferentes. Nesse diálogo estabelecido implicitamente com a obra da Angela Davis, sobretudo com o clássico Mulheres, Raça e Classe, Chimamanda Adichie compreende e compartilha o quanto é importante partir de uma análise interseccional, ou seja, considerar indissociavelmente as categorias de gênero, raça e classe, para vislumbrar um outro paradigma de sociedade. Por exemplo, eu, enquanto mulher, negra e advinda de uma classe social menos privilegiada, não posso lutar por outras formas de sociabilidade desconsiderando esses meus atributos, uma vez que cada forma de opressão não me atinge separadamente. Considerando as diferenças, podemos pensar, enfrentar e transformar as opressões estruturantes de nossa sociedade, entre elas o machismo e o racismo. Portanto, ainda que seja um livro voltado às mulheres, certamente todos deveriam ler esse manifesto de Adichie, para que possamos continuar inventando coletivamente outras maneiras de educar as crianças.

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