Lirismo e libertação

Jenyffer Nascimento. Terra fértil. São Paulo: Edição da autora, 2014.

photo_2017-10-23_00-33-00Começo esta resenha com duas citações, colhidas nos textos prefaciais a Terra fértil. A primeira, de Carmen Faustino, apresenta Jenyffer Nascimento como “mulher negra periférica, escritora, mãe, estudante, educadora, boêmia, raiz, ventania e liberdade”; a segunda, de Elizandra Souza, descreve a poesia de Jenyffer como “cinematográfica”, por mostrar “uma dicotomia entre ficção e documentário, composições de imagens e sons, reversando-se com suas duas câmeras subjetiva e objetiva”. Penso que essas citações, sintetizando olhares de notáveis intelectuais negras sobre a autora e sua obra, compõem uma boa introdução para esta resenha, na medida em que evidenciam a pluralidade temática de Terra fértil – expressão da sensibilidade de uma mulher capaz de transpor para o texto literário uma visão de mundo densa e singular. A primorosa capa, assinada por Lucimara Penaforte, figura uma mulher negra com a face coberta por uma máscara felina, as mãos vertendo labaredas, sobre um fundo que emula pinturas rupestres – elementos aproveitados no refinado projeto gráfico de Nina Vieira; de fato, é possível, num exercício imaginativo, pensar na poetisa Jenyffer Nascimento como uma mulher que se lança sobre o mundo com ferocidade, disposta a rasgar o real para dele arrancar o lirismo, não recusando seus aspectos mais sombrios ou dolorosos.

Entre os poemas que  mais vigorosamente abordam essas dimensões sórdidas do mundo em que vivemos, destaco Grito – uma entre várias composições que, assumindo um tom de denúncia, vocalizam as opressões decorrentes de uma sociedade marcadamente misógina: “Nas multidões muitas mulheres estão mortas. / Dá pra ver nos olhares opacos / Morreram por dentro / E apenas vagueiam. // […] // Carrego comigo o legado / De minha mãe, de minha avó / E de tantas outras que me antecederam. / O grito que carrego também é delas. // Pelos prazeres que não puderam ter / Pelo corpo feminino que não puderam explorar / Pelo voto e palavras negadas / Pelo potencial não exercido / Pelo choro em lágrimas secas”. Em Menina bonita sem laço de fita, o discurso de Jenyffer Nascimento expõe o peso do racismo sobre a infância das meninas negras: “Menina, só quer ser bonita. // Do nariz já não gosta / Da boca tem vergonha. / Toda semana o ritual. / Acorda cedo, lava o cabelo / Separa mecha por mecha / Começa a chapinha. / Às vezes o couro arde, queima. / Ela já não liga” – mesmo que, nos versos finais, aponte para a possibilidade de superação: “Menina bonita, sem laço nem fita / Tenho certeza / Eu ainda vou te ver brilhar / E seu cabelo crespo reinar. // Futura Rainha Nagô”.

Com efeito: se a poesia de Jenyffer assume a tarefa de desvelar a violência imposta pelas estruturas de poder, nem por isso deixa de contemplar as formas possíveis de resistência. Identidade começa abordando o solapamento da individualidade no mundo contemporâneo – “Cansei de ser uma foto 3×4 / Acompanhada por uma sequência de dígitos. // Cansei de ser número / No RG, CPF, Título de Eleitor / Passaporte, Carteira de Trabalho. // A burocracia nunca me enxerga como gente. // […] // Cansei de ser número / Engrossando as estatísticas / De mãe solteira sem superior completo / De mulher negra que sofreu violência doméstica / Que agora sou parte dos 56% da classe C / Segundo a revista Exame. / Vexame”, mas traz no desfecho a recusa desse apagamento: “Enquanto houver brilho nos olhos / Não posso, nem quero ser só um número.” Trata-se de uma poesia militante no sentido mais rigoroso do termo: para além da denúncia, importa construir o caminho que conduz à emancipação. Em decorrência disso, embora o lirismo de Jenyffer Nascimento não refugue diante do dever de encarar os horrores do real, ainda assim se dispõe a resgatar os instantes de beleza que dele emergem.

Por conseguinte, o temário amoroso e erótico ganha relevo – não apenas como uma espécie de refúgio diante das agruras, mas como um espaço no qual a afirmação da liberdade é, sobretudo, necessária.  Sem refreios, Jenyffer canta o desejo que dispensa o pudor: “Eu é que não nego a preferência. // Gosto de paixão buliçosa / Doce e crocante que nem pé de moleque. / Regada a álcool, a madrugada como cenário / Com cenas impróprias para menores de 16” (Mania de colecionadora). Sem hesitação ou complacência, rejeita o afeto que falseia – “Por que você me pintou assim desse jeito? / Tracejada em aquarela / Em meio a tons pastéis? / Essa não sou eu. // Por que insiste em me enquadrar / Numa moldura arcaica?” (Olhos sobre ela) – ou o que se acaba na avareza – “Cansei de me embriagar sem você pra me carregar. / Cansei de sambar sem você pra acompanhar meu compasso. / Cansei de escrever textos com seu nome” (Fui). Se a poesia de Jenyffer  parece sempre procurar a libertação, como nela haveria espaço para um amor que não ofereça uma promessa de liberdade? A afetividade surge, desse modo, como o locus em que a emancipação se faz mais urgente: se o pessoal é político, como há tempos vêm reafirmando os discursos feministas, importa fazer do amor uma forma de romper grilhões. Como lemos no desfecho de Antítese: “Exigiram fidelidade e submissão / Eu rompi por amor próprio. // Cagaram mil e uma regras de conduta / Eu toquei o foda-se / E sorri, feliz”.

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