Dory, nome de rimadora

Dory de Oliveira. Se perguntarem, diga que eu me chamo Dory de Oliveira. 2017.

DORY“Por eu ser mulher, preta, periférica, rapper e lésbica / Eu tive que aprender a ser 5 vezes melhor sempre / Aprender e sobreviver aos arranhões / Com coragem e ousadia / Não tenha vergonha de ser quem você é / Nunca, nunca, nunca”: os versos que abrem Coragem e ousadia, segunda faixa do álbum de estreia de Dory de Oliveira, servem como uma espécie de cartão de visitas. Identificar-se dessa forma implica posicionar-se em um lugar de fala específico, a partir do qual Dory se reconhece como alvo de um vasto conjunto de opressões; ao mesmo tempo, significa assumir a responsabilidade de construir um discurso que seja capaz de ultrapassar múltiplas tentativas de silenciamento. Ser cinco vezes melhor implica resistir contra a misoginia, contra o racismo, contra o classismo, contra o preconceito musical e contra a lesbofobia; não obstante, desde uma perspectiva interseccional, cabe perceber que essas opressões se fortalecem mutuamente, o que potencializa cada uma delas – e torna ainda mais poderoso (e necessário) o discurso da rapper.

Moradora de Itaquera, atuante desde 2005, Dory de Oliveira reúne neste álbum quinze faixas que, retomando e articulando temas articulados a uma premente pauta política, constituem um impetuoso libelo, cuja força é acentuada por uma voz intensa e rascante. A faixa de abertura, Rimadora, enfatiza a eloquência de seu discurso, que ostensivamente assume o compromisso de produzir uma arte que dialogue com as sensibilidades periféricas: “Quer rima? Então toma, igual metralhadora / Aqui tem ideia forte, tipo voadora, vai / Dory de Oliveira é rimadora / Desculpa, papai, eu nunca quis ser doutora / Quis ser cantora de rap / Igual às mina lacradora”. Reclamar como projeto existencial ser rapper, não doutora, significa empenhar-se na construção de um trabalho francamente balizado pelo engajamento: mais importa a “ideia forte”, cujo efeito possa mobilizar afetos e despertar consciências, do que a busca por status ou prestígio.

A colagem de vozes presente em Rimadora mescla discursos em torno de um dos motivos centrais do álbum: a luta pela emancipação feminina – “Supremacia masculina acabará com o decorrer do tempo”; “Inferioridade feminina é coisa do passado”; “Tenho uma pá de aliada pronta pra disparar”. Ainda que o tema permeie todo o conjunto de faixas do álbum, em Delete nos machistas surge de modo particularmente vigoroso. “Já era, as mina tão na rua, fera”, abre-se a letra, anunciando “o levante de quem cansou de ser tirada”; “Delete nos machistas / Tem mina na pista / No poder, na luta, incomodando, sim / Não é disputa, fi, é merecimento / E tenho orgulho, e é nosso por direito”. Para além de proclamar a luta por igualdade e de vocalizar o pensamento de uma militante atenta às forças opressoras, a letra opera como uma espécie de metáfora para o próprio tipo de rap praticado por Dory de Oliveira – um rap disposto a desafiar uma hegemonia masculina que determinou uma tradição marcadamente patriarcal, muitas vezes explicitamente misógina. O “delete nos machistas” envolve, também, um “delete” nas letras e valores machistas que ainda permeiam o cenário do hip-hop, abrindo espaço para vozes prontas a contestar estereótipos que naturalizam a opressão sobre a mulher e a pautar novas questões – como a violência de gênero, por exemplo: “Como assim, tapa na cara? / Humilhação, a mina ali caída / Arrastada na multidão, ah não! / Ó o jogo virando, machão / É a revolta das minas, segura o rojão”.

Sintomática desses novos horizontes que Dory e outras rappers vêm construindo é uma faixa como É o que tem pra hoje, que trata de uma relação amorosa entre duas mulheres (a partir da música, aliás, foi produzido um belíssimo clipe, com direção de Talita Brito e participação da modelo Carol Lima). Descrevendo cenas do cotidiano, momentos íntimos e confissões de amor, a faixa constitui um pujante manifesto em favor da diversidade sexual, ainda mais valoroso pelo momento político que atravessamos, no qual vêm recrudescendo as forças reacionárias: “Cê adora me ver rimar eu adoro te ver dançar / […] / Acredito em vida pós-vida / Você vive essa daqui / […] / A tatoo eternizada no seu corpo / Diz que sim, eternas enquanto dure / Se depender da louca aqui / Enfim, só eu e você, abre logo o vinho rosé / Apaga a luz aí que é o que tem pra hoje, vai”. Dory de Oliveira não teme amar; não teme cantar o seu amor; não teme ser quem é e seguir seu caminho – o caminho de uma rimadora sempre fiel a seus valores.

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