Olhar através da vivência periférica

Conceição Evaristo. Olhos D’Água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016.

OLHOSDDoutora em literatura comparada pela UFF, Conceição Evaristo é oriunda de uma favela de Belo Horizonte, capital mineira, e é exatamente esse convívio com aquelas e aqueles apenas eventualmente presentes nos livros que a autora recupera em Olhos D’Água, bem como em outras obras de sua autoria. A escrita de Conceição registra a vida de resistência das mulheres negras, principalmente, o que a torna essencial para compreender o Brasil, os seus preconceitos e violências. Nessa produção encontramos faveladas, moradoras de rua, empregadas domésticas, entre outros, em narrativas que descrevem suas trajetórias com uma genuinidade que não creio ser possível de ser propagada por uma voz de fora desse espaço.

Os vários relatos presentes no livro refletem momentos que podem ser perfeitamente encontrados no nosso cotidiano, nas nossas vivências familiares, nos arredores de nossas casas e que se refletem em nossos olhos d’água. Conceição conseguiu transformar a dureza da realidade em poesia, conduzir a dor pela linguagem, trazer um recorte social que muitos desejam que permaneça marginalizado. Olhos D’Água nasce de uma escrita que é capaz de ser suave e árdua na mesma medida e, às vezes, ao mesmo tempo; assim, nos encaminha para uma pluralidade de personagens que têm vidas próprias, dentro da especificidade de cada conto, mas que também podem ser analisados em conjunto – seja enquanto reflexos da sociedade em que vivemos, seja enquanto partes de uma mesma narrativa.

O livro me faz ter um olhar encantado para a realidade que descreve: sem delongas, vai retratando a realidade da periferia – de periféricos e em sua maioria, de mulheres periféricas. Ele já surge como uma lâmina. O primeiro conto trata de uma mulher que tem olhos d’água, “olhos de mamãe Oxum”. Podemos observar que, desde o título, a escritora emprega a figura dos olhos para consolidar um centro de poeticidade e significado para o conto. É através dessa imagem que a narradora desperta em si as lembranças belas e dolorosas de sua infância; dessa forma, manifesta a urgência de se encontrar com sua mãe e com suas origens. O conto nos fala também da futilidade da vida e de como ela pode se esvair entre os dedos, feito água. Faz compreender como essas vivências ficam à margem e têm sua validade suspensa porque são constantemente silenciadas.

Esse silenciamento é desfeito a partir do momento que Conceição dá voz às pessoas, de diversas maneiras. Conta a história da mulher que casou com um bandido, e de outra que foi apenas uma criança sonhadora e depois se tornou prostituta e mendiga. Em certos momentos, a autora nos coloca diante das violências cotidianas, fruto do racismo e da misoginia. Assim, as narrativas construídas pela autora muitas vezes se entrelaçam, ficando difícil dissociar um conto do outro, o que torna tudo muito mais denso. A cada relato lido, uma voz única ganha potência, como aquele respirar intenso antes do grito que aproxima em porções de dor, sofrimento e coragem a vida dessas pessoas.

Há também lugar para o amor, afinal, mesmo na mudez homens e mulheres podem amar de diversas formas; mesmo com todo o peso do mundo culpando-os apenas por serem quem são. Existe espaço para a morte; há, principalmente, o limite entre a vida e a morte. E, quando resta a vida, é nessa tênue linha que residem os desejos mais íntimos das personagens de Conceição Evaristo, que talvez a leitora perceba também nas entrelinhas do texto. A obra traz a mulher que mata, a mulher que chora, a mulher que aborta, a mulher que é abandonada, um homem que ama outro homem, uma mulher que ama outra mulher, desafiando e provocando reflexões quanto à ordem das coisas.

O espaço que a autora de Olhos D’Água ocupa em nossa literatura vai muito além das criações ficcionais e personagens capazes de despertar a empatia da leitora em poucos parágrafos. Sua voz autoral, conjugada ao trabalho estético visível em seus textos, convergem para a produção de uma escrita singular. Ao evocar a África e a sapiência das Yabás, a obra de Conceição Evaristo nos leva a contemplar profundamente o sentido de ser negro no Brasil.

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