Neide Almeida. Nós: 20 poemas e uma oferenda. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.
Escrito por Neide Almeida e publicado pela Ciclo Contínuo Editorial, o livro Nós: 20 poemas e uma oferenda é um compilado de poesias que trazem como temas norteadores questões referentes à ancestralidade, ao corpo e à negritude. Neide é socióloga, mestra em Linguística Aplicada e autora de muitos artigos, materiais sobre educação, cultura e direitos humanos. Apaixonada pela leitura, desde muito nova começou a fazer uso da palavra como ferramenta de expressão da sua ancestralidade. Poeta. Atualmente, coordena o Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil e integra o Conselho Editorial do selo Ferina, da Pólen Livros.
Nós: 20 poemas e uma oferenda traz fortes marcas da ancestralidade que está presente nos títulos dos poemas, nos vocábulos escolhidos e nas experiências narradas. A partir de um olhar sensível, somos capazes de conhecer e desfrutar das heranças africanas. O trabalho de Neide Almeida se preocupa em dar forma artística a esse material. Ao combinar o sentido, a métrica e os sons, é que produz seu estilo literário. É esse estilo que contém as marcas das nossas ancestralidades. Nesse sentido, essa obra trata de diversas questões da sociedade atual: passa pela visão da história, da antropologia, da memória, da oralidade; ao mesmo tempo, estabelece um importante diálogo com essas áreas do conhecimento, a partir do momento em que encontramos referências potentes desses símbolos na narrativa. Esse modo de resgatar memórias ancestrais em textos literários representa uma forma de modificar, inverter, paralisar a vida cotidiana e chamar a atenção para alguma coisa não dita. É o exercício de recontar a história e reconstruir a narrativa.
Um dos temas mais presentes na obra é o corpo. Neide traz o corpo como construção cultural; como portador de sensações, sentidos, emoções que resultam das relações históricas e sociais. Estes sentidos é que vão definir a forma do homem ser, estar no mundo e movimentar-se. Um corpo que trilha um caminho entrelaçado à tradição herdada, à oralidade, à mitologia, aos cantos, aos gestos e aos ritmos. Neide retorna para o corpo por meio de memórias ancestrais, com ações corporais carregadas de significados, trazendo-as para o presente e ressignificando-as por meio de seus poemas. O corpo é uma espécie de morada que, simultaneamente, escreve e interpreta, significa e é significado, sendo colocado como território, veículo da memória, abrigo e força ancestral. Podemos encontrar essas referências sobre o corpo em passagens como estas:
Mergulho na profundidade dos tons
de nossas peles
e sinto enegrecer ainda mais
o corpo-alma
o corpo-mente
meu canto
minha palavra.
(Abebé)Meu corpo é um campo de solo revolto
sob pés guiados por tambores.
Meu corpo é um campo aberto,
arena de muitas disputas.
Meu corpo é uma campo sagrado
habitado por ritos
de vida e de morte
(Corpo)
Penso na possibilidade de ler a obra a partir do conceito de escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo, se o entendemos como um conceito que propõe explicitar e discutir as trajetórias das histórias de afro-brasileiros Podemos observar marcas autobiográficas, uma “escrita de si”, considerando o fato de que a subjetividade de qualquer escritor ou escritora contamina a sua escrita. Neide propõe um processo consciente de criação literária que mostra a vivência negra descrita a partir de seus dilemas e conflitos; mas, sobretudo, através da sua alegria e liberdade. Essa obra atravessa muitas vidas negras. Seja pela busca da relação entre ancestralidade e identidade ou pela identificação de trajetórias similares em seus aspectos mais delicados e verdadeiros. O texto entregue ao leitor tem força poética em cada vocábulo escolhido, mostrando uma linguagem totalmente singular para a poética brasileira, através do protagonismo feminino negro.
Permeado por uma atmosfera do sagrado, além de uma afetuosa e despojada negritude feminina, os versos da poeta revelam uma intensa intimidade com o texto, que se dá através da sua relação com os livros e pelo seu trabalho coerente com a palavra. A leitura é potente e cada vez mais necessária. Um livro carregado de emoções múltiplas que, muitas vezes, aparecem ao mesmo tempo. Mais uma experiência totalmente válida para a literatura preta. Vale ressaltar a colaboração artística, realizada com a participação da ilustradora Laura Erremayes: suas ilustrações trazem ainda mais beleza aos poemas de Neide e ajudam a fortalecer sua relação com a ancestralidade.