Miriam Alves. Mulher Mat(r)iz – prosas de Miriam Alves. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
Em 1999, a escritora paulistana Miriam Alves deu uma entrevista afirmando que cada escritor é a fala do seu próprio lugar. Acredito que, para autores pertencentes a grupos minoritários – especialmente no caso das mulheres negras –, essa afirmação é o eixo norteador de suas produções artísticas. A obra Mulher Mat(r)iz, objeto de análise desta resenha, nos apresenta uma Miriam que se reinventa e vai além da afirmativa expressa inicialmente neste texto – falando sobre, nas palavras de Alves, “várias possibilidades vivencial-afetivas” de mulheres negras.
A obra é um compilado de onze prosas, produzidas ao longo de mais de vinte anos de carreira como literata de Miriam. O talento literário da autora se deixa entrever já na capa do livro, a partir de um título que já conduz o leitor a uma reflexão: Mulher Mat(r)iz. Nota-se desde já uma pluralidade significativa, característica do texto literário, em que ora se lê “Mulher Matriz”, ora “Mulher Matiz”. Dessa duplicidade, extraio significados que se coadunam com a experiência de leitura que os textos permitem a quem o lê. Primeiro, em “Mulher Matriz”, faço uma leitura de um protagonismo feminino negro, como base e origem – não só de uma esfera ficcional, mas também de uma sociedade ainda patriarcal. Essa percepção da mulher negra como matriz é interessante porque nos remonta à ideia de Angela Davis sobre esse papel basilar que o corpo feminino negro possui e sobre como ele comporta uma força tamanha, capaz de movimentar toda uma estrutura social ao se movimentar. Em segundo lugar, em “Mulher Matiz”, leio as protagonistas e personagens secundárias como um conjunto de experiências únicas, individuais. São corpos repletos de nuanças, à semelhança de uma paleta de cores: nenhum deles é capaz de substituir ou representar o outro. Miriam confere às mulheres um movimento contrário à tentativa de universalização do patriarcado e de movimentos feministas que não olham para mulheres não-brancas. Ainda pensando em cores, é interessante observar como elas estão presentes ao longo das prosas. A negritude das personagens é apresentada de maneira implícita, através de referências a matizes que vão desde o negror enluarado de Alice (de “Alice está morta”) ao ocre amainado de Esmeralda (de “Os olhos verdes de Esmeralda”).
Outro ponto a ser destacado da obra de Alves são as questões discutidas nos enredos. Noutra entrevista fornecida em 2007, Miriam fala sobre o processo de escrita como um ato político e sobre a necessidade de ressignificar o corpo negro, resgatando-o e se reapropriando dele como sujeito dentro da literatura – algo que nos fora negado pela tradição literária. Ela também afirma seu gosto por temáticas existenciais, voltadas para a condição humana em geral. Tais temas, segundo ela, aparecem na sua escrita interseccionados socialmente pela sua vivência e experiência enquanto mulher negra. Em Mulher Mat(r)iz, boa parte das estórias é sobre os questionamentos e dificuldades das relações humanas, obviamente entrecortados pela questão de gênero e raça. Entretanto, leitora, chamo a sua atenção para um processo de humanização do corpo feminino negro, que permeia todas as narrativas. Explico: os enredos são atravessados por temas como a percepção existencial do eu; a necessidade de se reencontrar como indivíduo (“Um só gole”); a lesboafetividade – tanto do ponto de vista do amor que aperfeiçoa o melhor de nós quanto do amor vítima da brutalidade (“Abajur” e “Os olhos verdes de Esmeralda”) –; o erotismo – força emancipatória das personagens femininas diante da repressão do patriarcado (“Abajur”) –; a amizade (“A cega e a negra – uma fábula”); segredos escusos (“Xeque-mate”); e a submissão feminina aos desejos e deliberações masculinas, ainda presentes no cotidiano de muitas mulheres (“Cinco cartas para Rael”). Note que todos esses temas fazem parte das vivências femininas em geral. É justamente nisso que reside essa humanização. Se Simone de Beauvoir diz que a mulher é o outro em relação ao masculino, Grada Kilomba aprofunda essa percepção afirmando que a mulher negra é “o outro do outro”, devido ao distanciamento que se faz da sua existência na dicotomia de Beauvoir e à tentativa de desumanização de mulheres negras ao longo da história. O que Alves faz é apresentar à leitora personagens acometidas das mais diversas sensações e inquietações humanas, para além das questões raciais.
Ao mesmo tempo, a condição negra é marcada em todas as narrativas, especialmente em “Brincadeira” – conto cujo protagonismo pertence a um menino negro vítima do racismo na infância – e em “O retorno de Tatiana”, que fala sobre a necessidade de retornar à ancestralidade da cultura africana para reconhecer-se e compreender-se novamente como pessoa. Outro ponto a ser destacado é que a condição apresentada nos enredos não é marcada pela presença negra nos espaços periféricos; ao contrário: a ficção de Miriam Alves nos apresenta protagonistas em boas posições sociais e sendo caracterizadas por independências tanto do ponto de vista material quanto do ponto de vista emocional – este último ponto sendo exceção em “Cinco cartas para Rael”, “Brincadeira” e “Alice está morta”. O que me aparece é uma tentativa de representar na literatura uma geração de mulheres negras técnicas, graduadas, mestras, doutoras, enfim, donas da sua própria caminhada, capazes de tecer outras possibilidades de vida. Os últimos períodos de “Um só gole” fazem uma síntese dessa nova geração e desse corpo feminino humanizado:
Em pé, olhei-me novamente no espelho: não rastejava mais, não portava mais inconvenientes corcundas. Soltei-me em emoções. Abracei-me à vida. Caminhei.
Se no começo desta resenha afirmei que Miriam Alves foi além da ideia de falar do seu próprio lugar, nota-se ao longo deste breve texto que sua potencialidade narrativa ampliou essa possibilidade de fala sobre a condição da mulher negra. Tudo isso se dá nos processos de humanização e representação, já mencionados parágrafos atrás, mas também na capacidade reflexiva que emana de todas as narrativas. É através da organização das tramas, das constantes surpresas e quebras de expectativas provocadas pelos textos que, enquanto leitores, ressignificamos as experiências dos personagens e a nossa própria existência.
Republicou isso em REBLOGADOR.
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Excelente! Ainda não conhecia a autora e o livro, lamentavelmente, mas já ponho na minha lista desde já. Penso que muitos buscam um lugar de escritor se vendem ao tentar inserção no mercado escrevendo não sobre o que pensa, não difundindo sua voz, asteando uma bandeira nobre, contribuindo com legítimas lutas sociais… Antes, disparam onde a chance do tiro ferir o alvo é muito maior, preferem travar as lutas fáceis.
Espero que as “Mirians” sigam aparecendo e lutando o bom combate com suas penas e tinteiros.
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