Carolina Maria de Jesus. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2014.
… A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde moro.
Oi, pretas! Hoje trago uma resenha do livro Quarto de despejo – diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus.
Carolina nasceu em Sacramento, Minas Gerais, em 14 de março de 1914. Mais tarde, após ser agredida devido a acusações de roubo motivadas pelo racismo, mudou-se para São Paulo, onde trabalhou, a princípio, como empregada doméstica de um cardiologista importante; e, após ser demitida quando engravidou do primeiro de três filhos, catadora de papel.
Quarto de despejo, escrito entre 1955 e 1960, trata do duplo caráter de sobrevivência que o papel representa na vida de Carolina: enquanto produto, cuja venda fornecia o mínimo de subsídios para que a família não morresse de fome; e enquanto instrumento, de onde a autora tirava o sustento psicológico para não morrer de desgosto.
Eu cato papel, ferro e nas horas vagas, escrevo.
Carolina escreveu por mais de vinte anos e passou boa parte deles tentando publicar os testemunhos, cuidadosamente dispostos em coleções de cadernos achados no lixo. Foi só em 1960 que ela realizou o sonho de ver seu nome numa capa de livro. A publicação de Quarto de despejo se revelou também um presente para o mundo, pois o livro, que vendeu cerca de dez mil cópias quando lançado, também faz muito sucesso fora do Brasil, sendo traduzido para mais de vinte línguas.
Carolina Maria de Jesus é uma artista completa, que extrapola quaisquer traçados frouxos de perfil que tendem a minimizá-la e negar-lhe o direito à Literatura – algo o que acontece desde a época de publicação, quando a autora foi acusada de ter forjado seus relatos (já que uma preta favelada supostamente jamais seria capaz de escrever daquela forma). Essa violência racista e classista agora ganha novos moldes, na voz daqueles que consideram que os diários de Carolina não são “literários”.
Mesmo anteriormente ao recente boom das pautas identitárias, que o vêm retomando e dando-lhe o merecido destaque, o livro de Carolina, em toda a sua prosa trabalhada e artística, não se furtou das verdades pouco palatáveis. Não há nele a figura (bastante estereotipada) da negra humilde, resignada, grata pelas “pequenas coisas”. Há denúncia. Há a evidência de que ela não gostava da extinta favela miserável do Canindé, para onde foi despejada, de dentro de um caminhão, junto com outras pessoas pobres: “Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”.
Para além disso, a autora também discorre sobre suas inclinações políticas, a preocupação com a educação dos seus filhos e a das demais crianças faveladas, o cotidiano dos vizinhos, sem condescendência – o que a levou a ser tida como fofoqueira, apesar de ser possível identificar fortes posicionamentos de Carolina sobre questões de gênero, contra a violência, o alcoolismo, assédio, etc. – além de mencionar marcos da expansão urbana pela qual passava São Paulo à época, a construção do estádio do Flamengo e as filmagens de Cidade ameaçada nas redondezas. Destaca-se ainda a solidão da favelada minimamente instruída, que desabafa os sentimentos de ser tão diferente – e, portanto, de estar tão distante – dos outros moradores da favela, mesmo que compartilhassem da mesma fome e falta de tudo.
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!
A realidade de Carolina não é distante da de incontáveis mulheres brasileiras. Em tempos de crescente (ainda que insuficiente) visibilidade para as nossas vivências e pautas, especialmente junto ao feminismo negro, Carolina é a porta-bandeira de velhas batalhas cujas vitórias são ainda muitíssimo novas. Mas, para além dessa vivência, ela nos representa em alguns outros aspectos, que apenas a leitura de Quarto de despejo, pontapé para o aprofundamento na sua produção literária – que também conta com Casa de alvenaria (1961), Provérbios e Pedaços da fome (ambos de 1963), dentre outros – pode revelar.
Pessoalmente, me identifiquei muito com ela. E reafirmo, pretas, que Carolina se distancia de estereótipos de nós. Desde a forma como toma a escrita como suporte para a sobrevivência, fora de qualquer romantização das dificuldades da vida, até a “mania de observar tudo, contar tudo, marcar os fatos” e à descrição que dá a um dos homens por quem se apaixonou, comparando-o a Castro Alves, que ecoou de alguma forma as minhas paixões (literárias ou não).
Ao longo do texto, você vai perceber que crescem a revolta e tristeza de Carolina diante da vida, o que é perfeitamente compreensível considerando sua situação, mas também não deixa de revelar mais sobre algo que vivia só dentro dela, assim como todas temos algo que vive só dentro de nós (lembremo-nos de que somos nossa própria teoria). Quarto de despejo é lindo em cada detalhe. E, se não são suficientes os elogios à obra, não me custa nada mesmo elogiar a autora, que respondeu às políticas racistas com denúncia, sim, mas sempre exaltando sua cor: “Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta”.
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