Por uma Terra cada vez mais Negra

 

Cristiane Sobral. Terra Negra. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

terranegraCada texto escrito, cada obra resenhada, cada livro de autoria feminina negra que eu leio é sempre numa tentativa de resgate – seja da ancestralidade, seja da identidade ou mais um encontro com a negritude. Tudo isso se materializa através da leitura e da escrita dessas obras. Com Terra Negra, não foi diferente. Cristiane Sobral é uma escritora negra, atriz, professora, mestra em artes pela UNB e ativista que tem um trabalho comprometido com as pautas identitárias e que, através de sua escrita, busca retratar as questões que perpassam as vidas negras. É com a potência da sua fala e escrita que ela se faz escutar, recontando não apenas a sua história, mas também as de outras mulheres negras.

O primeiro ponto que chama a minha atenção em sua obra é a forma poética com que traz questões fortes e dolorosas à tona. O mesmo lirismo impecável presente em Não vou mais lavar os pratos, a resistência de Só por hoje vou deixar meu cabelo em paz, tudo isso se soma para dar mais sentido e significado a essa obra. As palavras se revelam como um instrumento forte que irá compor todas as suas poesias. Versos repletos de representatividade que se apropriam da palavra para trazer essa inquietude e essa escrevivência, individual e coletiva. Para além das questões estéticas, há uma poesia marcada por uma história de vida, há uma trajetória em comum experienciada por muitas mulheres. Pela segunda vez, uso a palavra “mulheres”, justamente porque Terra Negra se direciona a nós. Através de seu trabalho, Cristiane faz um convite para que as mulheres se conheçam ou se reconheçam, se aceitem como são e assumam um posicionamento frente ao preconceito e o racismo. Sua poesia vai de encontro a muitos conceitos do feminismo negro, contemplando toda a diversidade que há em torno da mulher negra e de seu lugar no mundo.

Sempre haverá força nas mulheres
Isso é o que importa
Mulher não é planta seca
Mulher não é natureza morta

Toda mulher
pode se encontrar em suas águas
Toda mulher
Pode ser encontrar nas águas do mar.

(“Águas”)

Outro ponto importante a ser abordado é a forma nitidamente sensível como a autora tratas as questões referentes à natureza. Há uma preocupação em trazer a terra, a água, as folhas como elementos que nos constituem como ser. A natureza se faz presente em boa parte dos seus versos; falar dela é também se conectar à ancestralidade. Penso que essa obra nos leva a perceber que a natureza humana é igual à natureza, e não devemos tratá-las separadamente. Traz a consciência de que, se o respeito ao meio ambiente fosse contínuo, partindo de dentro para fora – no cotidiano, na família, nas relações de trabalho, no bairro, na cidade –, haveria mais equilíbrio. Quando Cristiane fala sobre o preconceito e a intolerância à diversidade de ideias, de gênero, raça ou credo, isso é uma provocação para pensarmos que essas questões evocam um sistema de dominação em que uns querem dominar os outros, desconsiderando o direito de pertencimento:

Eu sou essa flor
Na ausência de um admirador
Miro meu reflexo nas águas do rio
às margens da roseira
mergulho profundamente
Aceitando o bem e o mal me quer
No mais íntimo
Revisitando as dores
As delícias de ser mulher
Sorvendo os meus preciosos aromas.

(“Dama da Noite”)

Terra Negra traz uma poesia de enfrentamento; uma poesia que questiona lugares e que nos propicia um olhar mais crítico para distintos horizontes. Trata-se de uma obra essencial para nossos tempos e para escurecer o pensamento. Assim, uma Terra cada vez mais Negra se mostra fundamental.

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