Deolinda, Kayoko e o pardal no ninho da andorinha

“Você é duas pessoas. Luz e escuridão. Vida e morte. Você vive em dois mundos, mas não está encontra o lar em nenhum deles. Você é um pardal no ninho de uma andorinha.”

Yuko (The Terror, 2ª temporada, 1º episódio)

Ser uma pessoa diaspórica é complicado. Isso se intensifica vivendo num Brasil que festeja uma suposta democracia racial para esconder violências seculares contra grupos sociais historicamente marginalizados e/ou racializados. É a minha condição desde 1994, uma mulher negra, filha de uma professora preta belenense, e nissei, filha de um pai nascido japonês imigrante.

Esse texto é sobre uma jornada baseada em ser duas pessoas e procurar o lar em vários lugares de diferentes formas. É também sobre duas mulheres fundamentais em minha existência que tenho o desafio de tentar entendê-las novamente, como seres humanos. Esse exercício de reler minhas avós paterna e materna também é uma forma de evitar cair nas idealizações ou tentar justificar seus atos e erros para ter paz comigo mesma. Quero recuperar as memórias e vidas dessas mulheres enquanto sujeitos, pensar como as ancestralidades que elas trouxeram me formaram e tentar recuperar vozes que, por suas histórias e significados, merecem ser ouvidas.

Deolinda/Carol – Uma mulher e suas insubmissas existências

78147970_2484850378292332_1010497494263529472_nO fato de minha avó materna ter mudado o modo como as pessoas a chamavam, socialmente. Mudou o Deolinda do batismo para Carol, por vontade própria. Minha visão dela tem a ver com essa imensa força de vontade e potência, que a tornou um sujeito único, nos aspectos positivos e negativos da vida. Quando leio os contos de Conceição de Evaristo, como os da coletânea Insubmissas Lágrimas Mulheres, lembro-me da dona Carol. Fico imaginando quantas vivências ali não são também vivências dela. Minhas primeiras lembranças da minha avó materna (ao menos, as que consigo resgatar conscientemente) são dela fazendo churrasco sábado de manhã, conversando com o passarinho na gaiola, no corredor de fora de casa. Também lembro dela deitada embaixo da minha rede, me embalando. Do rosto sempre sério, poucos sorrisos. Quando eu era criança, tinha um sentimento de amor misturado com medo. Amor era pelo cuidado, o medo pelo cenho franzido e as atitudes ríspidas que eu, enquanto criança, não entendia. Depois de crescida, na graduação, comecei a ver e pensar na minha avó como sujeito. Na fase final da vida, ela ficou cega e teve um Alzheimer extremamente debilitante, que extinguiu a mulher que eu conheci e a tornou um ser muito debilitado, cujo sofrimento era dobrado por uma vida de forçada independência desde a infância.

Por muito tempo da minha história recente, vi minha avó sob a ótica da idealização. Uma mulher negra forte que viveu tudo o que tinha de pior pra criar nossa família. Semianalfabeta, com uma filha professora e uma neta doutoranda. Mas a verdade é que minha avó é mais do que uma “história de superação”. Minha avó é um ser humano que acertou e errou, que – mesmo sendo a interseccção viva de tantas opressões – perpetuou várias opressões na própria vida e nas dos que lhe eram próximos. Conciliando suas contradições, também enfrentou vários padrões. Criou os filhos sozinha por opção. Sim, tinha homens dispostos a casar com minha avó. E ela disse não. Sob seu conservadorismo extremo, tinha uma felicidade grande e uma vaidade em cuidar da própria imagem. Com seu cenho fechado, nunca dava mole para “os brancos, donos de tudo” e sempre teve uma firmeza e a capacidade de encarar as situações difíceis que lhe colocavam, talvez não da forma mais apropriada, mas com a firmeza que só uma negra paraense tem (lembro-me dela durante o divórcio dos meus pais, tentando conciliar as coisas em casa, mesmo já cega e com independência reduzida). Lembro também dos relatos da minha mãe na infância e o quanto eu discordava da forma como minha avó conduzia a relação entre as duas e a preferência que era dada ao meu tio, ao invés da minha mãe (minha avó apoiou meu pai na proibição da minha mãe cursar o ensino superior, pois era “coisa de vagabunda”). Eu evitei encarar tudo isso, anteriormente. Era mais fácil lembrar do estímulo positivo. De pensar na minha vó na dinâmica vítima/superação. É mais confortável.

Dona Deolinda compartilha muito dos traços de personalidades e sofrimento dos personagens de Conceição Evaristo. Só que ela não o é. Tal qual as personagens, ela tem bastante na sua vida de uma experiência coletiva, compartilhada por grupos socialmente marginalizados. Contudo, isso não pode justificar a complexidade de seus erros e de sua subjetividade. Entendê-la como a amálgama de uma experiência coletiva e da própria consciência tem sido meu exercício de humanizá-la. Venho pensando em quais eram os sonhos dela, quais escolhas teria feito para além da sobrevivência, da sobrecarga de trabalho e da maternidade precoce e solitária. De quais músicas gostava, o que a fazia sorrir ou chorar. Quais eram suas crenças políticas. Quais lugares ela desejava ter conhecido. A morte me tolheu a oportunidade de ter essas respostas. Mas perguntá-las e tirá-la do lugar “minha avó, essa história de superação” é fundamental para que eu a entenda como sujeito e para que eu me entenda, cure os traumas geracionais aos quais nós, enquanto mulheres negras, somos submetidas.

Kayoko – Filha da flor e do segredo

78254582_2484850278292342_1117378438324289536_nYokai é o nome dado pelos japoneses ao conjunto de criaturas sobrenaturais de sua cultura. A morte e o sobrenatural são parte constitutiva das religiões e do cotidiano no Japão, assim como o culto aos ancestrais, que por muitos estudiosos é considerado a primeira expressão de religião japonesa. Tudo isso, eu aprendi na pós-graduação e num trabalho de recuperação da ancestralidade paterna e do conhecimento sobre o país onde meu pai nasceu, depois de uma diáspora traumática para ele e um divórcio entre ele e minha mãe que foi traumático para mim e para minha família.

Porém, na minha vida, a primeira lembrança da minha avó também tem a ver com a morte. Todo dia de finados, meu pai e ela (por vezes, outro parente paterno também) iam a Igarapé Açu visitar o túmulo do meu avô, que morreu bem antes de eu nascer. O dia desse cerimonial de honrar a memória do falecido esposo foi também a data de partida desta vida para ela, nesse ano de 2019.

Minha avó morreu e eu nunca tive um último contato com ela. Kayoko era uma mulher que nasceu há quase cem anos, num Japão absurdamente diferente do de hoje. Quando soube de sua morte, pensei em todas as coisas que nunca pude conversar com ela. De todas as coisas que nunca saberei. Onde ela nasceu (meu pai nasceu em Saga, mas não sei se minha avó era de lá), como era o país em que ela viveu, como era ser mulher nesse país, quais eram suas lembranças de infância e juventude. Também nunca saberei o que ela esperava para si até a guerra de homens muito distantes dela arrancá-la de casa e levá-la para o outro lado do mundo. Também nunca saberei dos seus defeitos ou qualidades. Pensar nela como um sujeito é mais desafiador do que pensar na dona Carol, com quem eu vivi toda a vida. Porque, para pensar na minha avó Kayoko como sujeito, eu tenho que atravessar o abismo dos anos de afeto roubados pela distância geográfica (ela morava em Manaus, e eu, em Belém; o custo de deslocamento interno na Amazônia e a idade dela dificultavam o contato, na minha infância) e por um divórcio traumático – que instintivamente me fizeram renegar toda minha ancestralidade japonesa, por raiva do meu pai).

Mas eu a imagino como um sujeito corajoso. Atravessou o mundo para dar uma boa vida a si e aos seus. Minhas memórias dela são poucas, mas não serão facilmente apagadas. As mãos manchadas pela idade, o cheiro bem peculiar de vó (que era muito diferente nas duas) e o jeito calmo, misturado a uma fala muito atrelada à língua japonesa (marcando com “né” o final de cada frase). Como minha outra avó, não casou. Por qual motivo, também nunca saberei. Minha mãe dizia que minha avó materna era “geniosa demais” pra homem. Meu pai nunca comentou a opção da sua mãe de não casar. Ambas nunca poderão me esclarecer o porquê disso.

Talvez, pensando nas leituras de autoras negras e asiáticas, porque o patriarcado e o marido fossem mais um bastião de cerceamento da própria liberdade. Por mais que a falta de um marido também significasse déficit material, talvez Kayoko e Deolinda – que compartilhavam conservadorismos semelhantes, ainda que culturalmente distintos em suas origens – quisessem conservar um mínimo de autonomia individual; talvez não casar fosse a maneira delas de exercer o direito de escolha, numa sociedade que lhes tirou tanto.

Um pardal no ninho da andorinha – sobre ser mulher negra e ser nissei

Descobri-me negra depois de vir pro Sul. A miscigenação paraense envolve caboclos, negros, indígenas amazônicos, japoneses, árabes, brasileiros de outras regiões, portugueses, franceses e, mais recentemente, chineses e venezuelanos, entre outros. Eu me acostumei a ver uma população de tons de pele diversos, algo que se repete na minha família. Era muito confortável, portanto, estar num limbo étnico/racial-social, que me privava de consciência política e me mantinha ignorante sobre vários direitos (como as cotas raciais) e questões relativas a pessoas negras tais quais eu.

Descobrir-me negra através da violência do Sul contra pessoas não brancas também trouxe a peculiar consciência de que eu era duas vezes racializada: negra e filha de um japonês, o que me colocava um degrau de distância mais distante da branquitude sulista. Isso se evidenciou pelas cantadas que levei, sendo chamada de “exótica”, e a admissão, por parte de um ex, que, de fato, eu era um ser alienígena dentre as pessoas com quem ele se envolveu (por ser negra e nissei, sendo que ele se relaciona majoritariamente com mulheres brancas). Recentemente, o ódio racial que se espalhou com as eleições gerou ataques, também, a asiáticos em São Paulo. Fora isso, Belém vive uma onda recente de imigração chinesa (como várias cidades do Brasil), e as questões da precariedade das condições de vidas destes sujeitos asiáticos se colocam novamente, como mostram relatos sobre chineses em situação de rua ou de trabalho escravo, que chegaram a mim por amigos. Digo novamente, pois meu pai e sua família sofreram com essa precariedade que resultou em trabalho infantil e perda de grande parte da própria língua materna, para meu pai. Pensar a Amazônia como uma terra de miscigenação e acolhimento também é uma maneira de apagar debates sociais necessários para que imigrantes tenham condições de vida dignas.

Resgatar as histórias das minhas avós e suas ancestralidades é mais do que levantar o necessário debate da coalizão antirracista no Brasil do ódio (o que tenho feito através da minha produção acadêmica e de debates em redes sociais). Para mim, é um exercício de cura das feridas intergeracionais. É um modo de desidealizar a minha família e perdoar a nós pelos erros cometidos. É uma forma de reencontrar a mim mesma através da história delas e para além, para achar a Yasmim que existe como sujeito singular, como indivíduo.

Deolinda/Carol era uma mulher de muita luta, beleza e dor. Kayoko significa “segredo” ou “filha das flores”. Muito além de matriarcas ou minhas avós, eram duas mulheres que viveram, tiveram medo, erraram, e que deixaram uma vida e um legado para que eu pudesse estar onde estou hoje. Olho para elas, tento entendê-las, sabendo que tenho a missão de ser quem sou, como elas não puderam, como um exercício de liberdade pessoal e de honrar a memória delas.

“eu sou a primeira mulher na minha linhagem com liberdade de escolha. para criar o futuro da maneira que eu escolher. dizer o que está em minha mente quando eu quiser. sem o barulho do chicote.há centenas de primeiras vezes que eu tenho que agradecer. que minha mãe e a mãe dela e a mãe dela não tiveram o privilégio de sentir.que honra. ser a primeira mulher da família que experimenta seus desejos. não admira que eu esteja morrendo de fome para preencher esta vida. eu tenho gerações de barrigas para comer. as avós devem estar uivando com risadas. encolhidas em torno de um fogão de barro na vida após a morte.bebericando em copos fumegantes de masala chai leitoso. quão selvagem deve ser para eles verem uma de sua própria carne vivendo tão ousadamente.”

Rupi Kaur

Sobre a autora

37826190_1707541022689942_2777130582352592896_nYasmim Pereira Yonekura é licenciada em Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Pará (2014), onde também atuou como bolsista, pelo Departamento de Língua e Literatura (DLLT), no programa de Monitoria. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Estudos Culturais.Foi pós-graduanda e bolsista CAPES no Mestrado do Programa de Pós Graduação em Inglês, na Universidade Federal de Santa Catarina, de março de 2015 até agosto de 2017. No mês de agosto de 2017, defendeu a dissertação e obteve o título de mestrado em Estudos Linguísticos e Literários pelo Programa de Pós Graduação em Inglês da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é estudante de doutorado no referido programa, sob orientação da professora doutora Alessandra Brandão.

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