Durante o ensino médio, por fazer parte de turma com foco em concursos militares, eu estudei muita física, química e matemática. Apesar de sempre serem associadas a números, essas matérias também têm uma parte teórica pesada. E, quando estudamos as teorias, também estudamos os homens que as criaram. “Homens, Mahara?? Só homens?? Você não está falando sério”. É isso mesmo que você leu. Homens. Eu te desafio agora a pensar em uma mulher cientista ou pesquisadora que você tenha conhecido durante sua vida escolar. Eu consigo pensar na Marie Curie. Mesmo assim, meu professor de química também deu devido destaque ao seu marido, que também contribuiu com a pesquisa. Outro professor de física contou a história segundo a qual a esposa de Albert Einstein também pode ter ajudado o marido, mas foi só um “fato curioso” que ele contou durante a aula. Elas são as únicas mulheres cientistas de que eu tive algum conhecimento sobre durante minha vida escolar. Nenhuma das duas é negra.
Eu parei pra pensar nisso porque no dia 11 de fevereiro foi comemorado o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência; e por causa desse dia, três mulheres negras me vieram à cabeça. Pode ser que você as conheça. Uma delas é Katherine Johnson, uma mulher negra que trabalhou na NASA e calculava as trajetórias, janelas de lançamento e caminhos de retorno de emergência para muitos voos de missões espaciais dos EUA, incluindo a missão que levou o homem pra lua pela primeira vez. Katherine faleceu em 24 de fevereiro, e suas contribuições à comunidade científica foram rememoradas. A outra mulher a quem devemos dar os devidos créditos é a biomédica Jaqueline de Jesus, que foi uma das responsáveis pela equipe que sequenciou o genoma do coronavírus em 48 horas. Apesar dos portais de notícia focarem nos seus estudos na USP – em nível de pós-doutorado –, Jaqueline formou-se em Biomedicina pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, é mestre em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa pelo Instituto de Pesquisas Gonçalo Moniz – Fundação Oswaldo Cruz e Doutora em Patologia Humana e Experimental pela Universidade Federal da Bahia. Ou seja, a mulher é foda. A terceira é Sônia Guimarães, que é a primeira mulher negra brasileira a ser doutora em Física, além de ter sido a primeira mulher negra a lecionar no Instituto de Tecnologia da Aeronáutica, na época em que meninas ainda não podiam estudar na instituição. Não tinha ouvido falar delas até entrar na faculdade.
Por que eu disse tudo isso? Bem, vamos às duras verdades, e vamos considerar o contexto brasileiro: Katherines, Jaques e Sônias são a exceção. Eu vou explicar isso melhor, mas antes vem a parte chata – pelo menos pra alguns, e pra mim também, dependendo do meu humor –, os números: dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico(CNPq) de 2015 apontam que apenas 12 mil mulheres estavam em pesquisa acadêmica nas áreas de tecnologia, engenharia e exatas, contra quase 23 mil homens. Dados do mesmo ano apontam que as mulheres negras são apenas 26% das mulheres pesquisadoras do Brasil, e apenas 7% das bolsas de produtividade são destinadas a mulheres negras. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2018, 33% das mulheres negras entre 19 e 24 anos não concluíram o ensino médio, e apenas 10,4% das mulheres negras com idade entre 25 a 44 anos concluem o ensino superior. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o percentual de mulheres negras (pretas e pardas) doutoras professoras de programas de pós-graduação é inferior a 3%.
Já deu pra perceber que ser preta e estudante no Brasil é complicado. E agora você deve estar se perguntado por que isso acontece. Vamos lá: o Brasil foi colônia de Portugal por quase 300 anos e, durante todo esse tempo, a elite intelectual branca era a classe privilegiada, com acesso ao ensino superior. A escravidão durou o mesmo tempo, e seu efeito é sentido pela população negra até hoje. A população negra brasileira continuou ignorada; não eram considerados estrangeiros, mas também não eram considerados cidadãos brasileiros, isso até a década de 30 (e, mesmo hoje, parte considerável da população negra não tem pleno acesso à cidadania). Algumas décadas depois, enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito de trabalhar fora de casa, as mulheres negras trabalhavam nas casas destas como domésticas, vendendo doces na rua, uma realidade bem distante da emancipação acadêmica. Após a implementação do sistema de cotas, em 2012, o número de pessoas negras ocupando o ensino superior aumentou. Apesar disso, a quantidade de pessoas negras que concluem o ensino superior ainda é menor que a quantidade de pessoas brancas. Vários fatores podem justificar essa evasão: horário de trabalho incompatível com os estudos; repetência, que é consequência da deficiência na educação básica; problemas financeiros, entre outros. Ainda que sejamos maioria no ensino superior, a quando se trata de alunos do nível de pós-graduação e pesquisadores, temos poucos representantes homens e negros, e ainda menos mulheres negras. Mesmo depois de terem concluído todos os estudos, as mulheres negras ainda se veem na obrigação de provar que são as melhores. O fato de serem pretas e mulheres aparece socialmente como uma característica negativa. É como se a sociedade exigisse de nós uma compensação por esse “pecado”, e essa exigência acaba por criar a necessidade de comprovação. E não pense que a comprovação garante igualdade e aceitação: as mulheres negras ainda ganham menos que mulheres brancas ocupando o mesmo cargo, são minoria no meio da pesquisa e todos os dias têm que superar as barreiras do racismo e do sexismo.
Acho que você, assim como eu, deve ter ouvido dos seus pais que “a única maneira de uma pessoa preta crescer no Brasil é estudando”, certo? Você provavelmente também sabe que é difícil priorizar a educação quando se tem que trabalhar, filho para cuidar, quando você tem que botar comida na mesa, ou trabalhar para ajudar os pais e complementar a renda. Quando se tem várias barreiras socioeconômicas para superar, realmente é muito difícil optar pela educação. Isso explica o fato de tão poucos concluírem o ensino superior e seguir carreira acadêmica. Por isso as Katherines, Sônias e Jaques são exceção. Mesmo com os obstáculos, as Katherines, Sônias e Jaques existem, e aos poucos estão tomando esses espaços, tendo que lidar com o racismo e o machismo, todos os dias. Vivendo e resistindo e tornando-se fontes de inspiração para outras pretas que querem seguir carreira acadêmica. Temos que dar destaque pra essas mulheres, porque elas existem e porque elas merecem.
Fica aqui o meu salve para todas as pretas e acadêmicas. Para todas as Katherines, Sônias e Jaques.
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