Tornando-se “sujeitA”

Grada Kilomba. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó, 2019.

41vYXs-clsLGrada Kilomba é uma escritora, psicóloga, teórica e, além disso, uma incrível artista interdisciplinar – criadora da exposição Desobediências Poéticas, apresentada na Pinacoteca de São Paulo em 2019. Nascida em Portugal, em 1968, hoje vive em Berlim, onde concluiu seu Doutorado com a construção da obra que conquistou o primeiro lugar entre os cinco livros mais vendidos na FLIP de 2019: Memórias da Plantação. O livro foi publicado originalmente em 2008, mas somente em 2019 as palavras de Grada Kilomba ficaram conhecidas em terras brasileiras.

…Um novo vocabulário, no qual eu pudesse finalmente encontrar-me. No qual eu pudesse ser eu.

A autora inicia a obra abordando uma inquietação sobre o nosso não-pertencimento também na língua portuguesa. Esse não-pertencimento inclui pessoas negras e LGBTTQI+, já que na nossa língua algumas designações racistas nos perseguem no dia a dia (tais como as palavras “mulata” e “mestiça”); além disso, as palavras de gênero masculino e feminino não atendem à realidade de identificação de parte do último grupo. E é com esse pensamento de desconstrução que, no decorrer da obra, a artista prioriza o uso da variação feminina das palavras.

Uma vez escravizadas/os, a cor da pele de africanas/os passou a ser tolerada pelos senhores brancos, mas o cabelo não, que acabou se tornando um símbolo de “primitividade”, desordem, inferioridade e não-civilização.

Passando por temas como “Políticas do Cabelo” e “Suicídio”, a obra trata das memórias traumáticas do povo negro – a relação do passado colonial com o atual racismo cotidiano. A artista embarca nos episódios racistas contados pelas entrevistadas escolhidas e analisa, com o olhar da teoria psicanalítica e pós-colonial, situações rotineiras na vida da/o sujeita/o negra/o.

A sensibilidade das análises feitas pela autora contam não só com a teoria psicanalítica e pós-colonial, mas também com sua vivência, pois além de ser igualmente uma mulher negra, Grada Kilomba também experiencia a realidade (de ser colocada como Outra e não pertencente a aquele espaço) relatada por suas entrevistadas, enfrentando a adoecedora rotina por ser “ a única estudante negra em todo o departamento de psicologia clínica e psicanálise” em Berlim.

…Não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas vozes, graças a um sistema racista, têm sido sistemicamente desqualificadas, consideradas conhecimento inválido; ou então representadas por pessoas brancas que, ironicamente, tornam-se “especialistas” em nossa cultura, e mesmo em nós.

Um outro ponto muito importante é abordado na obra: a não-neutralidade da academia em relação ao conhecimento; ou, em outras palavras, a invalidação da voz da pessoa negra nesses espaços. O conhecimento e os caminhos de construção do saber tomam forma a partir da voz branca. Nossa voz, portanto, é desacreditada e foge ao que é comum, ao que é pertencente, ao que é padrão. Por essa razão, o racismo genderizado, cotidianamente, obriga a mulher negra a carregar o peso de um sistema silenciador que se constrói dentro (e fora) das estruturas acadêmicas. Na contramão dessa realidade e em busca do nosso fortalecimento, no decorrer da obra, Kilomba aponta para a necessidade da descolonização do conhecimento, o que me fez lembrar do projeto para o qual escrevo este texto e do qual o imenso prazer de fazer parte: o LetrasPretas é um lindo exemplo de descolonização do conhecimento, visto que o nosso propósito é colocar no centro a produção cultural, artística e literária de mulheres negras.

Por fim, cabe dizer que a leitora irá se deparar com uma explosão de identificação com os assuntos abordados pela autora. Essa identificação só é possível porque Grada Kilomba toma como missão tornar mulheres negras donas e protagonistas de suas próprias histórias com o racismo. São elas que narram e dividem a experiência, deixando de ser o objeto (posição atribuída ao nosso corpo no meio acadêmico) para tornar-se “a sujeita”.

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