Sobre ser uma mulher negra na pós-graduação

Ainda sob o efeito da felicidade – e do alívio – de ter defendido a minha dissertação de mestrado há alguns dias, fiquei horas pensando como transpor para um texto um pouco das minhas reflexões sobre a minha vivência enquanto mulher negra na pós-graduação. Foi um processo de revisitação dos meus dois anos de pesquisa e de como tudo isso começou – obviamente, a aprovação para cursar o mestrado foi o ponto de partida, mas me refiro a algo anterior, que não se refere somente a mim.

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Não é novidade para nós que o racismo da sociedade tenta cercear os nossos espaços de atuação, buscando impor qual posição devemos ocupar. Há toda uma estrutura que contribui para isso. Os principais espaços da sociedade e as artes em geral – refiro-me, especialmente, ao que é considerado como canônico – ainda são predominantemente brancos num país de maioria negra. Reflexo de uma branquitude que ainda insiste em continuar com os seus privilégios e controlando os espaços de poder da sociedade. Inevitavelmente, tudo isso nos atravessa.

Mas voltando ao modo como tudo começou, lembrei-me do seguinte: se em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, tudo no mundo começa com um sim, começo a ter cada vez mais certeza de que, na realidade das pessoas negras, quase tudo no mundo começa com um não. Digo isso porque durante esse processo de rememoração, lembrei das palavras de Grada Kilomba no evento Flip::Flup no MAR – O encontro das festas literárias! – inclusive, há um relato sobre esse evento aqui no blog. Grada disse no evento que faz parte do processo de descolonização recusar os papeis impostos pela branquitude e que sempre que dizemos não a isso “nosso eu interno é presenteado, pois dessa forma outros caminhos de liberdade se abrem para nós”. Esse foi o meu começo: assim como outras pessoas negras que rejeitaram as imposições racistas, eu disse não aos papeis que tentaram me impor e iniciei o meu mestrado.

Fique tranquila, leitora! Não farei uma exposição minuciosa sobre os anos do mestrado, mas gostaria de fazer algumas reflexões sobre situações que notei serem bem comuns na minha trajetória e na de outras pessoas negras, especialmente mulheres. Aliás, pessoas essas que eu tive dificuldade de encontrar no programa de pós-graduação que frequentei, porque o quantitativo de pessoas negras nesses cursos ainda é pequeno e essa situação se repete em boa parte das outras universidades Brasil afora – em 2018, éramos apenas 30% dos pós-graduandos brasileiros.

O primeiro ponto da minha reflexão é sobre o que percebi com a minha defesa: o peso do título de mestra também possui grande valor fora do ambiente universitário. É sabido que titulações de especialização, mestrado e doutorado se limitam ao espaço acadêmico, mas para nós elas assumem uma conotação que vai além dos muros das universidades ou do Currículo Lattes. Assim como outras pessoas negras, sou a primeira da minha família a alcançar esse título e como você pode ver pelo percentual que coloquei acima, isso significa que essa situação ainda – repito: ainda! – não chegou para a maioria das famílias negras. Além disso, eu preciso partir de uma reflexão do meu orientador: se pensarmos na maneira como os nossos antepassados chegaram aqui e os lugares que estamos conquistando, depois de tantos anos de luta de cada um daqueles que nos antecederam, não é difícil imaginar a importância que um título de especialização, mestrado ou doutorado tem fora do ambiente acadêmico para nós.

Outro ponto interessante para se refletir sobre a academia é a falsa ideia de que a pesquisa deve ser objetiva e imparcial. Quando se pesquisa gênero e raça – elementos basilares da minha pesquisa –, por exemplo, não é incomum ter o seu trabalho considerado como algo subjetivo e pouco acadêmico. Grada Kilomba fala sobre o quão falso é esse julgamento. De acordo com ela, todo trabalho é, inevitavelmente, perpassado pela subjetividade do pesquisador. Afinal de contas, é o olhar particular que torna toda pesquisa única. O problema é que, nas sociedades ocidentais, o que é considerado objetivo parte de uma ótica masculina e branca, ao passo que tudo o que é considerado subjetivo representa o que está fora das concepções de branquitude e de masculinidade. Essa percepção persiste na academia porque ela ainda é composta majoritariamente de homens brancos, aqueles que têm seus conhecimentos e discursos validados como universais. Se a universidade é o espaço de produção e reatualização do conhecimento, a pouca presença de pessoas negras, especialmente no caso das mulheres negras, faz com que as nossas pautas sejam pouco contempladas nas pesquisas acadêmicas.

Isso não significa dizer que, por sermos pesquisadoras negras, precisamos restringir o nosso trabalho apenas ao recorte racial, ou melhor, não devemos permitir que tentem restringir a nossa atuação dentro da academia. Não é incomum encontrar na pós-graduação de Letras professores e estudantes brancos que fazem a seguinte pergunta: “por que você não estuda literatura africana?” A pergunta vem desse jeito mesmo, leitora, restringindo e ignorando toda a pluralidade das literaturas dos países africanos. A minha pesquisa é em literatura portuguesa e ninguém nunca me disse que eu estudo literatura europeia, porque ainda há uma tácita permissão que valida o discurso de que as literaturas do continente europeu possuem as suas especificidades, ao passo que as literaturas do continente africano não. Além dessa peculiaridade da pergunta, há outra questão que me deixa incomodada: há uma percepção de que eu, enquanto uma pessoa negra, devo estudar a “literatura africana”, como se esse fosse apenas o meu lugar. Novamente, precisamos dizer não para essa imposição. Podemos dedicar as nossas pesquisas a qualquer temática. Somos potentes demais para nos limitarem!

Também é preciso considerar que essa percepção sobre as nossas potencialidades dentro da academia não ocorre naturalmente para a maioria de nós. Nossas trajetórias escolares são atravessadas por processos de invisibilização e negação do conhecimento, que nos acompanham até a universidade. E vale dizer que a situação se agrava quando consideramos a questão do gênero: não é incomum participar de aulas cujas únicas falas permitidas ou consideradas são de alunos homens. Desconstruir anos de epistemicídio dá trabalho e é algo complexo, mas resistimos novamente dizendo não às tentativas estruturais de silenciamento. Outro fator que, a meu ver, dificulta a manutenção da nossa “autoestima acadêmica” é falta de pessoas negras – especialmente de mulheres – no corpo docente. Há pouca representatividade. O quantitativo de professores negros nas universidades não chega nem próximo da metade do número total de docentes que temos atuando no país. Embora a minha universidade tenha sido a pioneira no sistema de cotas na graduação – fato do qual me orgulho muito – , é, no mínimo, curioso que o seu corpo docente, pelo menos nos cursos de Letras, seja esmagadoramente branco. O sistema de cotas é fundamental enquanto uma ação reparadora para o acesso ao ensino superior, mas há que se pensar também nas outras barreiras “invisíveis” que existem.

É inegável que o nosso acesso à pós-graduação é muito mais complicado e complexo do que para pessoas brancas. Como disse ali em cima, há muitas barreiras estruturais da sociedade que tentam impedir o nosso acesso e a nossa permanência nesse espaço, principalmente, porque é da pós-graduação que saem os intelectuais e dirigentes do país, como já afirmou o presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Paulino Cardoso. A pouca oferta de bolsas – que só diminuem a cada canetada do Ministério da Educação –, a necessidade de aprender outros idiomas – uma barreia enorme para estudantes da rede pública que só estudaram o verbo to be ao longo de toda a trajetória escolar –, as questões financeiras que nos impedem de participar, com a frequência que gostaríamos, de congressos e eventos, porque precisamos conciliar os estudos com o trabalho… A lista de obstáculos é imensa, mas resistimos.

Resistimos porque é necessário enegrecermos cada vez mais a academia com a nossa presença e com as nossas epistemologias. É preciso descolonizar o conhecimento acadêmico, inserir cada vez mais autores negros – especialmente mulheres – nas nossas bibliografias e nos nossos cursos. É fundamental nos vermos nas pesquisas acadêmicas não como meros objetos de estudo estereotipados, mas como produtores de conhecimento. Somos vozes potentes demais para continuarmos em silêncio. Temos muito a contribuir para a comunidade científica do país. Acredito que a nossa presença cada vez mais intensa e constante é capaz de modificar esse espaço, para dizermos cada vez mais nãos a uma produção científica pouco abrangente e segregadora.

 

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