Tina Turner. Minha história de amor. BestSeller, 2019
Tina Turner, nome de batismo Anna Mae Bullok, nasceu em Nutbush, Tenessee, nos Estados Unidos. Dona de uma das vozes mais incríveis do rock’n’roll, de uma escrita sensível e composições carregadas de intensidade, Tina também possui um corpo dançante e, ao mesmo tempo, marcado por traumas, opressões e violência. Quando Tina fala sobre “Minha história de amor”, esse pronome possessivo aparece para dar ainda mais propriedade a uma narrativa individual, de renascimento, amor próprio – não é um clichê romântico envolvendo uma outra pessoa – e, sobretudo, resiliência.
Minha história de amor é uma obra autobiográfica em que Tina divide com os leitores suas experiências, vida pessoal e carreira. Um descrição delicada e minuciosa de acontecimentos, do auge ao sofrimento, que revela um pouco da identidade da rainha do rock, expondo muitos detalhes ainda desconhecidos por boa parte do seu público. Essa não é a primeira biografia sobre a cantora – Eu, Tina: A História de Minha Vida, que deu origem ao filme A verdadeira história de Tina Turner (assistam, inclusive!) já iniciara esse processo no qual Tina Turner compartilha seus relatos. Ao ler Minha história de amor, tive a impressão de que esse era o primeiro escrito de/sobre Tina; mas, ao buscar referências sobre as outras obras, percebo que há um compromisso de detalhar cada vez mais sua narrativa, numa tentativa de reforçá-la e fazer com que as pessoas não a esqueçam. Recontar a própria história me parece um mergulho, cada vez mais profundo, na sua existência. É exatamente essa dinâmica que eu percebo.
Na minha adolescência, meu pai tinha o costume de ouvir JB FM; foi lá que eu conheci Tina Turner, ao som de “The best”. Eu simplesmente fiquei apaixonada por sua voz potente e um pouco rouca. Quando vi a imagem de Tina pela primeira vez, me senti muito bem representada ao me deparar com uma mulher negra, belíssima, dona de uma performance impecável e cabelo arrepiado, que para mim, era de uma ousadia incrível e demonstrava o orgulho de si mesma. Ao ler sua biografia, observo que essa imagem é preservada. Apesar de todas as dificuldades e violências que sofreu, Tina encontrava em sua aparência uma forma de resistência e elevação da autoestima. Ah, fiquei surpresa também ao descobrir que seu cabelo afro-ousado era uma peruca – e, ao mesmo tempo, fiquei feliz em acompanhar os cuidados e delicadeza que ela tinha com suas perucas. Havia uma liberdade e autonomia que vinha desse movimento. Seu cabelo era fonte de vida! A relação da mulher negra com seu cabelo é sempre um ponto que me chama atenção em qualquer análise, e ver Tina fazer de suas madeixas – ainda que uma peruca, não deixa de ser cabelo – uma fonte de resiliência me fez perceber os inúmeros mecanismos que as mulheres negras utilizam para ressignificar suas experiências. Somos plurais.
Decidi, nesta resenha, enaltecer a figura de Tina o máximo que eu pudesse. Mas, apesar de me manter fiel a essa responsabilidade, não posso deixar de falar sobre as marcas de violência que perpassam a vida da cantora. Marcas essas que me trouxeram alguns gatilhos durante o processo de leitura. Então, fique atenta! Se você já passou/experienciou situações de violência doméstica, tenha um pouco mais de autocuidado ao ler as páginas em que Tina relata a vivência com Ike, seu ex-marido. Sempre que tratamos sobre as violações que a vida e os corpos das mulheres enfrentam, nos deparamos, imediatamente, com o machismo. Em Minha história de amor, não foi diferente, porém com um traço que me chama a atenção: Ike era um homem negro. Eu não conhecia esse homem e em boa parte da narrativa o imaginei como um homem branco; isso se deu muito por conta da postura de domínio, desumanização e de sempre se colocar como superior em relação à Tina. Isso me fez visualizar o óbvio, mas que nas discussões da contemporaneidade não parece tão explícito assim: uma mulher negra num relacionamento com um igual (homem negro) não está isenta da violência. Há muita desonestidade ao tentar minimizar essa questão. Ao tratar de gênero, falamos de um assunto muito delicado que não pode sair das nossas reflexões, muito menos ser inferiorizado. Quando Ike olhava para Tina via uma MULHER NEGRA e decidiu atacá-la, justamente, onde ele julgava estar acima, em um nível elevado, hierárquico, ou seja, o gênero. Não desvalorizem as questões de gênero.
Outro ponto que merece destaque é a capacidade resiliente de Tina Turner. Essa é a palavra que fica desta leitura, muito mais que uma história de amor – e esse sentimento aparece de forma muito genuína e latente: a resiliência é, de fato, aquilo que molda a narrativa. A competência que ela tem de lidar com os próprios problemas, de sobreviver ao caos, superar momentos difíceis, diante de situações adversas e não ceder à pressão, independentemente do contexto, é ímpar, impressiona. Penso que esse é um termo que muito permeia a vida e trajetória das mulheres negras, não mais como mulheres fortes – que aguentam tudo –, mas mulheres resilientes; mesmo estando imersas em todo um cenário de preconceito, discriminação e racismo, demonstramos uma reação resistente frente às adversidades. Dominamos a arte de “levantar a poeira e dar a volta por cima”; isso não começa por mim, não começa pela Tina Turner, é histórico! Basta olhar nossa música, a dança e as diferentes manifestações do povo preto no mundo. São respostas ao sofrimento, à violência e à escravidão. Todas essas maravilhas representam nossa capacidade de resiliência.
Ouvir “The best” após essa leitura me traz um novo olhar, uma nova perspectiva para minha experiência na adolescência. Essa música fala sobre “o melhor” de um relacionamento afetivo amoroso, que foi exatamente o que Tina viveu após encerrar o relacionamento com Ike. Encontrou alguém que a amasse, respeitasse e, acima de tudo, tratasse com dignidade. Minha história de amor é sobre amor próprio, mas também sobre a possibilidade de amar de novo o outro.
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