
Eu sempre me vi como uma aluna esforçada, e isso começou na escola. A vida toda estudei em escolas públicas de favelas. Meus pais sempre moraram de aluguel e crises financeiras sempre foram uma realidade na minha casa. Mudávamos constantemente de lar. Dificilmente passei mais de dois anos seguidos no mesmo colégio. Morávamos sempre em comunidades, algumas bem violentas, como era o caso do morro do Vidigal. Nos anos 90, a realidade no Vidigal, pelo menos a que conheci, era uma realidade marcada pela violência. Meus pais sempre alugavam casas no alto do morro, onde o aluguel era mais barato. De manhã bem cedo minha mãe colocava eu e minha irmã em uma kombi para descer até a escola Almirante Tamandaré, que ficava no ponto mais baixo do morro. Os únicos momentos em que eu saía de casa eram ou para ir à igreja ou para ir à escola. Logo, a escola era uma parte do meu dia da qual eu gostava muito. A mesma kombi em que descia com a minha irmã para chegar até a escola era utilizada pelos moradores e também pelos bandidos do morro. Era muito comum, por exemplo, eles entrarem com uma arma ou fuzil e sentarem ao nosso lado naquele espaço apertado. Lembro muito disso, pois aos olhos das crianças que crescem em uma realidade como essa, os bandidos representam também uma figura de autoridade, e naquele espaço apertado do meu transporte diário eu sabia que precisava ter muito cuidado e respeito perto deles. Eu não entendia, naquela época, que aquilo também era medo. Tudo isso para mim não era nenhuma novidade, assim como não era novidade alguma encontrar um corpo jogado pelos becos, coberto com um plástico preto, depois de uma noite de tiroteio no morro.
Mas voltemos à escola. Como o espaço escolar era o único momento de lazer fora de casa, aquele sempre foi um local a que eu dei muito valor. Minha mãe sempre dizia que eu precisava ser diferente dos outros alunos: precisava ser mais esforçada (olha a bendita palavrinha), precisava estudar mais, ser a mais interessada, sentar na frente da classe; e eu sempre levava comigo as palavras dela: “Estude, só estudando você vai mudar de vida, minha filha”. Mudança de vida, na minha cabeça, era sair da favela. Eu queria sair daquele lugar. Toda aquela violência diária, as casas sem o mínimo conforto onde morávamos, os problemas financeiros – sair dessa realidade era o que significava “mudar de vida”, e eu levei aquilo dentro de mim por toda a minha trajetória. Lembro de episódios com duas professoras em escolas que me marcaram muito. Um foi nessa escola do Vidigal: eu escrevi uma redação e, quando apresentei para a professora, ela amassou e jogou no lixo na minha frente. Eu não contei para a minha mãe. No dia em que a professora fez isso, a turma tinha aprontado e ela estava sem paciência, então internalizei a culpa por aquilo e voltei a sentar na minha cadeira. Outro episódio foi em outra escola. Era uma escola de bairro frequentada por alunos de comunidades próximas. Ninguém gostava daquela professora, era um dia de manhã e ela levou um jornal amarelado para a sala de aula. Era uma notícia antiga falando dos altos níveis de desemprego no país nos anos 60. Ela mostrou o jornal para a turma e perguntou se eles queriam ser os desempregados do futuro. Depois ela apontou para mim, eu estava sempre sentada próximo à cadeira dela e disse que daquela turma talvez a única que tivesse salvação fosse eu, pois eu sempre fui ESFORÇADA. Pois bem. Anos se passaram, minha relação com os estudos ao longo da vida foi se estreitando e cheguei ao mestrado. Foi quando me dei conta, pela primeira vez na vida, de que eu tinha a sensação de que todo o meu ESFORÇO não valia nada.
Não valia nada porque nunca me senti bem neste lugar, o lugar de pesquisadora. Um lugar de gente privilegiada, de muitas pessoas que não vinham da realidade periférica da cidade. Eu percebi que todo meu esforço não me fazia sentir, nem de perto, igual àquelas pessoas. Comecei, inclusive, a me sentir culpada por ter escolhido como profissão ser pesquisadora. Como eu posso ganhar uma bolsa no mestrado com o mesmo valor ganho por pessoas que trabalham de 8 a 12 horas por dia? Como posso chamar pesquisa de trabalho? Como posso, em um país que debocha da universidade pública e a desvaloriza, ter escolhido justamente este espaço como forma de crescimento profissional? Eu me senti burra. Ironicamente, no meu mestrado resolvi trabalhar com a obra de Carolina de Jesus. No começo, o que me moveu foi algo que nunca senti em relação às obras canônicas… identificação. Esta autora era negra, como eu sou. Passou pelo trauma da fome, o mesmo trauma que marcou a vida da minha avó; e, principalmente, veio de um espaço periférico da cidade – de certa forma, o mesmo espaço que eu. Mas a identificação foi tanta que em algum momento como pesquisadora eu me perdi. A mesma dor que Carolina de Jesus relatava em seus diários passou, de certa forma, a ser a minha dor também. Em algum momento eu entrei em desespero, pensando… eu fiz outra escolha errada?
Veio a pandemia. E todas essas frustrações foram somadas a crises de ansiedade e a um episódio de violência doméstica. Foi quando finalmente reconheci que, apesar de todo o meu esforço, eu precisava de ajuda. Precisava de ajuda urgente. Através das redes de amizade construídas ao longo da minha trajetória acadêmica, consegui tratamento com uma psicóloga. Uma psicóloga que, assim como eu, é uma mulher negra. Na primeira sessão com ela, me perguntei o motivo de estar fazendo aquilo. Se eu sempre consegui enfrentar meus desafios sozinha, se consegui ser a primeira da minha família a concluir uma graduação e entrar em um mestrado, se conquistei minha bolsa, tudo isso sozinha, em que momento eu fracassei a ponto de ter que pedir ajuda?
Algumas sessões de terapia depois, eu fui percebendo, com a minha psicóloga, como eu me escondia atrás do estereótipo da mulher negra que é forte o bastante para aguentar qualquer coisa. Eu aprendi que se sentir vulnerável não é ser fracassada. Eu podia e posso pedir ajuda. Eu pude sentir que podia, inclusive, chorar na terapia. Entendi que a culpa não é uma bagagem que preciso carregar nessa minha trajetória. Mas, de tudo isso, aprendi algo que para mim foi surpreendente e é o motivo de compartilhar este relato. Em algum momento da terapia, minha psicóloga perguntou como me sinto como aluna da minha orientadora, como aluna do mestrado. E eu disse a ela que me sentia ESFORÇADA. Na mesma hora ela me respondeu um NÃO. Ela me perguntou o motivo de eu me sentir esforçada, mas nunca me colocar no papel de INTELIGENTE, de alguém com CAPACIDADE de estar onde eu estou agora. Foi um choque. A vida toda achei que ser adjetivada como “esforçada” era um elogio, e nunca percebi como essa sensação constante de não pertencimento tem origem na ideia de que, como mulher negra periférica, o máximo que eu poderia era alcançar minhas conquistas acadêmicas por esforço e por capacidade. Eu paro aqui. Não quero passar a ideia de que, depois disso, tudo ficou bem. Não está. Estou em tratamento e viver cada dia como pesquisadora negra, em uma quarentena, em um contexto tenso de crise política, é um desafio diário. Às vezes, é doloroso. Reconhecer que tenho capacidade de estar onde estou é um processo. Somos mulheres negras, e me surpreende que refletir constantemente sobre este meu lugar no mundo sempre me faz perceber coisas novas. É um constante processo de iniciação à vida.
Sobre a autora
Este texto foi produzido por uma mulher negra que preferiu permanecer em anonimato.
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