Durante 22 anos jamais conheci o meu cabelo

Certa vez, conversando com um grupo de amigos sobre os mais variados tipos de cabelos, perguntaram-me como era o meu cabelo e eu, surpresa, percebi que não sabia como responder àquela pergunta. Não por falta de conhecimento do vasto leque de cabelos crespos que existem, mas pelo simples fato de não conhecer o meu próprio cabelo. Minha total falta de conhecimento não me permitiu responder qual era o tamanho, textura, volume ou qualquer outro tipo de informação a respeito do meu cabelo.

Soa estranho ler que eu não conheço meu cabelo, né? Como alguém pode não conhecer seu próprio cabelo? Ele, principalmente para nós mulheres negras, é um elemento importante na construção da identidade. Conhecê-lo significa possuir conhecimento sobre nós mesmas. Então, como eu poderia não conhecer algo que está intimamente entrelaçado à minha essência? Quando paro para pensar na trajetória do meu cabelo percebo que, desde criança, jamais o conheci de fato.

Na infância, minha mãe cuidava dele da forma mais prática possível: trançando. Fosse de jumbo, nylon ou com meu próprio cabelo; as tranças eram a forma mais rápida de penteá-lo para ir para escola, afinal, ela trabalhava todos os dias e não tinha muito tempo para cuidar dele. Logo, manter as tranças durante semanas era muito mais fácil, pois não demandava tanto cuidado quanto deixá-lo solto e “livre”. Ainda pequena, eu me apeguei às tranças, porque elas me proporcionavam o que meu cabelo natural não proporcionava: fios longos iguais aos das meninas brancas da minha escola. Eu queria ser aceita e ser considerada bonita como elas e, na minha cabeça, isso só seria possível se eu tivesse cabelos longos.

Passando a infância, veio a adolescência e, com ela, novamente a necessidade de ser aceita. Tranças, apliques, alisamentos, mega hair… Minha autoestima estava atrelada ao meu cabelo e mudava de acordo com os penteados que eu usava. Os poucos momentos em que o usei naturalmente durante a adolescência foram nos intervalos de um aplique para outro e, mesmo que por pouco tempo, me sentia desconfortável em sair na rua com ele ao natural.

Com o passar do tempo, comecei a me convencer de que usava os mais variados tipos de apliques por gosto pessoal, pois era prático e eu poderia mudar de visual sempre que quisesse sem danificar meu cabelo. E eu estava convencida disso até pouco tempo atrás, quando percebi que não sabia absolutamente nada sobre ele e que sem as tranças, laces e apliques eu era extremamente insegura em relação à minha aparência.

O que pra mim era um gosto pessoal vai muito além disso, quando levamos em conta os valores sociais. Toca numa ferida muito antiga e ainda aberta: a relação da mulher negra com o seu cabelo e com a sua autoestima. Eu não usava meu cabelo natural por medo de me tornar menos interessante aos olhos das outras pessoas, pois ainda vivemos numa sociedade que supervaloriza a aparência, que nos convence que para ser “bonita” e “feminina” é necessário ter cabelos longos, ser magra, delicada… Há uma série de estereótipos femininos que somos obrigadas a seguir para preencher o requisito do que é “aceitável e belo” para a sociedade, sem esquecermos que esse ideal de beleza é branco. E, se por acaso fugimos desse padrão de beleza socialmente aceito, fazemos de tudo – mesmo que inconscientemente – para entrarmos nele e sermos aceitas.

O que começou na infância como um penteado prático para ir à escola se transformou em uma dependência que, durante 22 anos, me privou de conhecer meu próprio cabelo e construir minha identidade. Assimilar que durante tanto tempo convivi com uma falsa ideia de autoaceitação foi extremamente doloroso, mas necessário para que, aos poucos, eu pudesse de fato trilhar o caminho da autoaceitação sem depender do olhar de aprovação dos outros.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: