Clarice Fortunato. Da vida nas ruas ao teto dos livros. Pallas, 2020.

Da vida nas ruas ao teto dos livros é estreia de Clarice Fortunato como autora de literatura. Narrado em primeira pessoa, o livro resgata várias memórias da autora. Clarice é negra, feminista, escritora, professora e pesquisadora; doutora em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, com período sanduíche na Universidade de Exeter, na Inglaterra. Foi no período em que esteve na Inglaterra que Clarice decidiu escrever seu livro.
A introdução da obra tem o objetivo de nortear o leitor e explicar por que ela decidiu escrever sua história; nos capítulos seguintes, temos a oportunidade de conhecê-la melhor, mergulhar em sua história e em memórias. É um livro com o qual o leitor se emociona, se identifica e se inspira. Os capítulos que contam sobre sua infância me emocionaram demais. Num primeiro momento, a autora narra sobre como era sua vida na fazenda, comentando sobre seus irmãos, que eram diferentes pela mistura genética de seus pais:
“Da mistura genética entre meu pai – pele e olhos negros – e minha mãe – branca de olhos azuis […] Por essa razão, na fazenda, ouviam-se rumores de que os filhos loiros eram de outro genitor.”
Clarice era mais parecida com seu pai, com cabelos mais crespos e pele negra. Era apenas um pouco mais clara e tinha um nariz menor; mas, como toda criança negra de cabelo crespo, ela tinha uma revolta silenciosa dentro de si, pois desejava ter o cabelo igual ao de sua mãe. A parte que mais me tocou, em relação à sua vida na fazenda, foi a que trata da morte de seu pai e da dor que isso trouxe à pequena Clarice: o mesmo sonho, toda noite, e a tristeza profunda, que a fez adoecer. Isso trouxe a ruína para sua família, pois o que aconteceu logo depois foi de partir meu coração: uma família de onze irmãos dividiu-se, e no final sobraram apenas Clarice e sua mãe.
Em consequência disso, Clarice e sua mãe foram morar na rua, pois, pasmem: mulher não podia assinar um contrato de aluguel! Sua mãe precisava de um marido para tal coisa, e o que ela arranjou não as ajudou em nada, pois era viciado em álcool, agressor e desempregado. Mineiro, como era conhecido, só piorou as coisas: desencadeou a cegueira da mãe da escritora. Isso fez com que, ela com sete anos, tivesse que cuidar de sua mãe. Para alegria da leitora, aparecem assistentes sociais para ajudá-las, oferecendo-lhes um lugar para ficar e consultas ao oftalmologista. Porém, em uma das consultas, elas acabam se perdendo novamente e voltam para as ruas. Os relatos sobre seu períodos nas ruas são de partir o coração: ela comenta sobre como as pessoas tinham medo, sobre as que fingiam não vê-las e sobre a sua fome. Um trecho que me marcou, nessa parte, foram os comentários da narradora acerca da forma hostil como as pessoas retiravam as duas da frente de seus comércios, que serviam de abrigo para pessoas que se encontravam nas ruas:
“(…) íamos dormir na frente da igreja. Imaginávamos que ali nos sentiríamos seguras. Contudo, os padres e as freiras passavam por nós constrangidos e, imediatamente, providenciavam a nossa retirada antes de começar a missa, para não constranger também os fiéis.”
Depois de um tempo, conseguindo novamente um lugar para ficar, a pequena Clarice amadurece mais ainda, com as tarefas domésticas sendo por sua conta. Ao mesmo tempo, uma nova felicidade brotava em seu coração: a vontade de estudar. Se ela alcançou seu sonho de ter um lar, poderia alcançar o sonho de ser uma estudante também. Contudo, a aparição repentina de sua irmã apenas atrasou seus sonhos. Desde a mudança para junto de sua irmã, sua vida se resumiu a cuidar da casa, de seus sobrinhos e de sua mãe. E isso prejudicou sua vida escolar, fazendo seu desempenho cair; além disso, Clarice era excluída pelo fato de ser negra e pobre: as outras crianças, também negras, a excluíam e ainda faziam piadas sobre seu cabelo, apenas porque ele era natural – diferente das outras meninas, que o tinham alisado, e dos meninos, que mantinham os cabelos raspados.
A perda de sua mãe fez Clarice perder o chão. Sua mãe era seu tudo, era o que a fazia ser forte. Essa parte, para mim, foi dolorosa de ler porque, assim como a personagem, perdi minha mãe jovem; ler sobre isso me fez reviver todas as sensações que tive com a perda. Assim como para mim, a perda prematura da mãe lhe deu força e resiliência.
Sua irmã não ajudava em nada: batia e humilhava Clarice, que, por conta disso, tinha diversas marcas no corpo. E não parava por aí: seu cunhado, que via seu corpo se desenvolver na puberdade, a assediava. Antes, Clarice não tinha coragem de sair dali, por causa de sua mãe; agora, nada a impedia. Procurou um emprego e assim saiu de casa. Estudando, chegou até o ensino médio, aos 23 anos. Seu sonho era ser professora, mas foi interrompido por algum tempo, por causa de uma professora que cometeu um ato racista, o que a fez não querer voltar ao colégio. Uma coisa que me fez ter admiração por Clarice foi que, mesmo com a dor que esse ato lhe trouxe, sua vontade de estudar não foi erradicada. Com muito esforço, ela conseguiu se tornar estudante na Universidade Federal de Santa Catarina. Minha alegria foi tanta ao ler isso! Mesmo tendo que trabalhar e dividir o seu tempo, muitas vezes ficando esgotada, Clarice se formou. Ler sobre sua formatura aqueceu minha alma! Ela conta sobre como ficou feliz ao ver a amiga que a ajudou e a apoiou, em parte de sua caminhada na faculdade.
Essa narrativa é extremamente poderosa; faz-nos perceber que podemos, sim, realizar nossos sonhos, mesmo que tenhamos pouco; mesmo com tantas pedras no nosso caminho, com o racismo que sofremos. Esse é um livro que indico para pessoas que precisam de motivação, pois foi assim que me senti ao terminar de ler essa bela obra. Da reflexão que a obra nos suscita sobre diversos assuntos, a mais evidente é a empatia para com o próximo. Espero que um dia, assim como Clarice, eu tenha a coragem de contar minha história.
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