Denise Camargo. De cor da pele. Jandaíra, 2019.

Durante a infância, fui uma criança intimamente ligada às artes, mais especificamente à pintura. Eu adorava desenhar e colorir animais, casas, paisagens e pessoas, embora esse último elemento fosse um desafio à parte. Na minha lúdica imaginação infantil, as pessoas eram coloridas: brancas, marrons, amarelas, vermelhas, e algumas vezes me permitia até colorir pessoas verdes. Mas todo este vasto leque de cores, na prática, era muitas vezes substituído por uma única cor bege-rosada, sem graça e sem vida, que costumamos chamar de lápis “cor de pele”. Era extremamente frustrante pra mim resumir toda a diversidade de cores existentes a uma única cor que, cá entre nós, não era a cor de ninguém. Lembro-me que, enquanto coloria meus desenhos com o lápis “cor de pele”, comparava-o com a tonalidade da minha pele – que nada tinha de semelhante – e me questionava: a qual cor de pele aquele lápis se referia?
Perguntas como essa incentivaram a fotógrafa, professora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília e pesquisadora cultural, Denise Camargo, a criar seu projeto e livro De cor da pele, publicado em 2019 pela editora Jandaíra. Coletando depoimentos e fotografando pessoas dos mais variados tons de pele, Denise constrói em seu livro uma atmosfera de entrevista que nos prende do início ao fim, enquanto acompanhamos a narrativa de cada entrevistado no livro e os dilemas vividos cotidianamente, devido à cor de pele.

Como afirma a introdução da obra, mais de trezentos anos de escravidão criaram no Brasil uma falsa percepção de democracia racial, a qual permite que o racismo se infiltre no nosso dia a dia, fazendo com que experiências como não conseguir reproduzir a própria imagem em um desenho usando o lápis “cor de pele”, por exemplo, se transformem em processos mais complexos, como a falta do autorreconhecimento racial.
Em seu primeiro depoimento, Denise traz uma experiência muito próxima – a qual deu origem ao seu projeto –, vivida por seu filho, que, ao chegar da escola, disse para a autora que queria ser “cor de pele”, a mesma cor que usava na sala de aula para colorir a pele nos desenhos:
“ – Mãe, eu queria ser “cor de pele”.
Incompreensível desejo. Ele tinha quatro anos e a certeza de que era marronzinho desde pequeno. O assunto nos rondou por alguns dias até descobrirmos o equívoco moldado em preconceito e alojado dentro de uma caixa de lápis de cor. Um deles trazia: “pele”. Um rosa pálido, cor da pele de ninguém. A dele tinha outro nome, o que fez sua busca naquele universo colorido resultar em fracasso.”
Sendo o Brasil o “país da mistura de raças”, temos uma grande diversidade de tons de pele, desde o mais claro ao mais escuro; por isso, precisamos de meios que representem nossa diversidade. O lápis “cor de pele” não nos cabe e nem representa aquela criança negra que, ao se colorir em um desenho, não encontra a sua cor. Queremos que uma criança negra possa se reconhecer de todas as formas possíveis, mesmo que esse reconhecimento venha sob a forma de uma caixa de lápis “cor de pele” que abranja todos os tons de peles existentes. O fato de não reconhecer seu tom de pele numa caixa de lápis pode até parecer trivial para alguns, mas lendo os depoimentos presentes no livro temos a noção de que o “buraco é bem mais embaixo” do que um simples lápis de cor. O livro nos faz perceber que, mesmo nos dias atuais, existe uma falta de conhecimento muito grande no que diz respeito à classificação da própria cor de pele por parte de alguns brasileiros. Palavras como “morena”, “mulata” e “cabocla”, entre outras, são diversas vezes usadas para definir como a pessoa entende não só sua cor de pele, mas também como se reconhece racialmente.
“Eu tenho dificuldade com a designação da cor da minha pele. Qual é a minha cor? Eu venho de família miscigenada. A minha avó é negra, tem um irmão que é mistura de negro com índio. Meu avô português era apelidado de maroto, que é cabelo de milho. Somos baianos e na Bahia a paleta de cor é gigantesca. Na Bahia ela não era negra, propriamente. Eu tenho um cabelo fino, grosso, liso, quem vem do índio que tem na minha família. Não encontro minha classificação no IBGE, mas pro meu pai, minha mãe é mulata fina e eu sou morena assentada. Não se diz mais mulata, sabemos, mas meu pai ainda diz.”
“ Menina, eu me dizia bronzeada. É que naquele tempo talvez fosse conveniente dissimular a cor…”
Um dos capítulos que vale a pena destacar aqui é o capítulo “135 tons de cor da pele”, em que a autora faz uma lista com os nomes popularmente utilizados por nós, brasileiros, para definir a cor da pele.

O projeto multimídia e livro De cor da pele teve início com a indignação de Denise, mãe e artista, sobre um episódio de racismo sofrido por seu filho, mas não se resumiu apenas a isso. Embora seja um projeto de debate e conscientização que traz narrativas de mulheres, mães – assim como a autora – e tantas outras pessoas que diariamente combatem estigmas e preconceitos que carregam em suas peles, o livro também é uma narrativa da pele, que busca, através de uma manifestação artística, retratar nossa diversidade – que, em meio a tantas tonalidades, faz parte da mesma identidade racial: a negra.
“A cor da minha pele é uma verdade sobre mim. É minha autenticação no mundo. Me chamaram de parda nos documentos, mas eu sou negra.”
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