Neste semestre, na faculdade, resolvi cursar a disciplina eletiva “Literatura afro-americana”; de longe, digo que é uma das melhores matérias que já cursei ao longo destes anos – tanto por amar a literatura norte-americana quanto pela oportunidade de estudar e conhecer escritoras pretas. No entanto, não pude deixar de sentir determinado incômodo enquanto cursava a disciplina, devido aos questionamentos criados por mim mesma acerca de como a distribuição da literatura “afro” – seja afro-americana ou afro-brasileira – é transmitida na sociedade e, sobretudo, na comunidade negra.

Ao longo da disciplina, estudei poetisas sobre as quais nunca tinha ouvido falar, como a Phillis Wheatley, e estudei, também, autoras sobre as quais ouvira falar apenas de forma distante. Ao ler um dos livros presentes na ementa da matéria, Em busca dos jardins de nossas mães, da Alice Waker, me deparei com menções honrosas a diversas escritoras e escritores. E uau! Que tantas pessoas importantes para a literatura são essas, sobre quem nunca nem ouvi falar?
Logo, comecei o meu trabalho de pesquisar cada autor e cada autora, juntamente de suas obras. Porém, logo percebi que a maioria das obras não possui tradução para o nosso idioma. Todos sabem que dificilmente uma pessoa negra terá acesso a determinados instrumentos de forma aprofundada, como o acesso a outros idiomas – e até mesmo a livros, por conta da ausência de um bom rendimento econômico e acessibilidade a tal. Dessa forma, enquanto buscava as obras de um dos romancistas negros mais consagrados dos Estados Unidos, Wallace Thurman, notei que um dos seus livros mais populares foi traduzido para dois idiomas estrangeiros em que eu possuo algum conhecimento – inglês e italiano –, mas não está disponível na minha língua materna.
Antes do sentimento de constatar como sou privilegiada ao saber mais dois idiomas, fiquei, sobretudo, triste e com raiva. Triste por perceber que eu não poderia passar determinado conteúdo escrito para membros da minha casa e nem debatê-lo durante um almoço em família, ou para minhas amigas da causa, ou conversar sobre ele com minhas possíveis futuras alunas, pois ninguém teria a familiaridade com uma língua estrangeira, bem como não teriam a chance de ler uma obra tão importante com seriedade, pois a leriam através de uma tradução “meia boca” feita por mim – “meia boca”, pois minha profissão não é a de tradutora e muito menos sou fluente nos idiomas que conheço; raiva, por saber como essas obras e escritoras chegaram a mim de forma tardia e que adquirir esse conhecimento não é algo tão fácil assim. E se eu não tirasse todo o meu dinheiro de estágios e bolsas percorridos nessa experiência acadêmica para não pagar um cursinho de idioma? E se não cursasse uma faculdade pública na qual, por sorte, tenho a oportunidade de estudar outro idioma de forma gratuita? Como poderia conhecer esses conteúdos que, de fato, são fundamentais para a minha profissão e para a minha identidade enquanto mulher negra?
Mais tarde, fiz um curso livre sobre literatura afro-brasileira oferecido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E, novamente, pude ver citações e ligações que se conectavam às autoras norte-americanas estudadas e vistas por mim. Logo, fiquei me perguntando quantas daquelas pessoas ali sabiam quem foram Phillis Wheatley, Zora Neale, Audre Lorde e etc. Assim como, de fato, quem daquela sala estaria entendendo a importância e as semelhanças daquelas autoras citadas em relação às autoras brasileiras que estávamos estudando naquele momento, como, por exemplo, Maria Firmina dos Reis.
Consequentemente, isso gerou mais angústia em mim. Parei para pensar na quantidade de editoras direcionadas, especialmente, a pessoas negras que existem no Brasil – e como a maioria delas luta para se manter. Parei para pensar no número irreal de quantos livros clássicos que não temos na nossa sociedade por falta de oportunidade. Parei para pensar no ciclo infinito que vivemos ao falar sobre oportunismo. Parei para pensar na quantidade e na dificuldade de uma pessoa negra se inserir no mercado editorial, uma caminho que, na maior parte das vezes, é percorrido somente por quem tem bons contatos. Parei para pensar como seria importante a tradução e a distribuição dessas obras para o nosso acervo cultural, para os estudos dos movimentos negros brasileiros, para a nossa literatura. Parei para pensar sobre como somos ausentes na nossa própria herança.
E, através de pensamentos e mais pensamentos, cheguei a uma conclusão. Embora cresça o volume de traduções de livros de pessoas pretas, publicações de escritoras negras e etc., a nossa herança e o nosso conhecimento daquilo que deveria ser transmitido, de forma gratuita e por um método fácil, para compreendermos, identificarmos e espalharmos a representatividade de pessoas semelhantes a nós às pessoas do nosso ciclo social, a chegada a nós dessas pessoas sempre vai ocorrer de forma fantasiosa e duvidosa, pois, além dos fragmentos históricos que foram apagados e esquecidos, e até mesmo daqueles que foram recuperados, o nosso conhecimento, infelizmente, sempre vai ser escasso – tanto pela falta de acesso quanto pela incompletude em que esses materiais e esse conhecimento nos são oferecidos.