
Nestes dias, pensei em como a ficção, de uma maneira mais livre, consegue representar a realidade e como, por esse motivo, conseguimos nos identificar com as situações vividas pelos personagens literários. Cara leitora, você irá entender as vivências pelas quais passamos ao longo dessa vida; e nós, mulheres negras, carregamos marcas e cicatrizes internas que ficam pelo resto da vida. Sabemos que ser mulher na sociedade é um desafio diário, por vivermos em um país machista; vivemos com medo, enfrentando o receio de sermos assediadas quando saímos de casa. Por outro lado, ser uma mulher negra no mundo faz com que encontremos outros empecilhos para sobreviver, seja por uma ofensa verbal ou seja, “simplesmente”, por um olhar diferente – que é suficiente para evidenciar a exclusão social, apenas pela cor da pele.
Algumas pessoas estereotipam os livros jovens, mais conhecidos como “Young Adults”, afirmando que eles não possuem nenhum ensinamento. Quanto engano! Recentemente, me veio à mente o livro que li em janeiro de 2019: O ódio que você semeia, da escritora norte- americana Angie Thomas – cujo livro de estreia venceu o Walter Dean Meyers, ficou em primeiro lugar na lista do New York Times e, em dezembro de 2018, foi adaptado para o cinema. A história narra a vida de Starr, adolescente negra que precisa se encaixar em dois mundos diferentes: o bairro pobre onde mora e o colégio particular em que estuda. Em uma noite, Starr presencia a morte de seu melhor amigo, Khalil, assassinado por um policial. Rapidamente a morte de seu amigo é levada às mídias, como se ele fosse um criminoso armado. Só há uma testemunha. A jovem e a família são ameaçados pela polícia e pelo chefe do tráfico local. O que realmente aconteceu naquela noite? Será que Starr terá coragem para denunciar o polical no tribunal? Eu espero que você fique curiosa, assim como eu fiquei ao passar pelas páginas.
Durante a leitura, consegui entender um pouco a segregação racial que a personagem principal sentia. Lembro-me de, aos 6 anos de idade, estar na sala de casa, assistindo a desenhos animados, quando meu pai se sentou para conversar comigo. A voz rouca ainda ecoa em meu ouvidos. Seriamente, recordo-me de quando ele disse: “Filha, está vendo a nossa cor?” – apontando para o braço: “Nós não possuímos valor nenhum para o Estado e meu desejo é que você não encontre a violência racial no futuro”. Como uma criança qualquer, não dei muita importância àquelas palavras; embora fosse muito pequena, meu pai continuou me alertando e me ensinando regras na sociedade: “Ao avistar um policial, não demonstre nervosismo, seja sempre educada e nunca ande depressa, mostre as suas mãos, caso precise, peça autorização para pegar seus documentos. Nunca responda a um policial. Caso um dia dirija, saiba que sempre será parada por uma blitz”. “O mundo é violento demais para pessoas pretas”, dizia ele. Esse pequeno momento aconteceu em 2006. Veja como o racismo só tem piorado desde então.
Mamãe se agitou e falou para o papai que eu era nova demais para isso. Ele argumentou que eu não era nova demais para ser presa nem levar um tiro.
– Starr-Starr, faça o que mandarem você fazer – disse ele. – Mantenha as mãos à vista. Não faça movimentos repentinos. Só fale quando falarem com você
No final de agosto de 2022, voltando da faculdade, estava ocorrendo uma operação da lei seca na entrada da minha rua. À noite, tudo fica muito deserto e, por isso, sempre acelero o meu passo. Porém, eu esqueci dos ensinamentos de meu pai. Ao andar rápido, o policial, com toda a sua ignorância, pegou a arma que estava colada ao corpo e a segurou: “Aonde vai com tanta pressa, menina?”, perguntou. Respondi então que estava indo em direção à minha casa, explicando que, à noite, é sempre perigoso no Rio de Janeiro. O policial continuou olhando desconfiado para mim e, rapidamente, deixei minhas mãos à frente do corpo para que observasse que eu não escondia nada. Ele então me liberou e disse para tomar cuidado. Fui para a minha casa me sentindo culpada. Eu estava errada. Poderia ter entrado nas estatísticas por algo tão banal. Se fosse uma pessoa branca, ele se importaria? Uma pessoa branca precisa aprender regras para sobreviver em uma sociedade? A culpa realmente era minha? Uma semana depois, encontrei outros policiais na minha rua fazendo operação. Já tinha aprendido a lição. Desacelerei o passo, cumprimentei todos e mantive a calma.
Esse é o problema. Nós deixamos as pessoas dizerem coisas, e elas dizem tanto que se torna uma coisa natural para elas e normal para nós. Qual é o sentido de ter voz se você vai ficar em silêncio nos momentos que não deveria?
Precisamos resistir. Não podemos esquecer de quem se foi. Quantas Marielles precisam nos deixar para acabar a violência? O conceito de liberdade é mais limitado para nós, negros e negras. Não podemos aceitar isso.
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