Contos em vozes negras

Amanda Cobasi, Flor.Priscila, Isa Souza, Maria Ferreira, Pétala Souza. Vozes Negras. Se Liga, 2019.

O livro Vozes Negras, publicado pela Editora Se Liga em 2019, é uma coletânea de contos, escritos apenas por mulheres negras, também protagonizados por mulheres negras. São as autoras: Amanda Cobasi, Flor.Priscila, Isa Souza, Maria Ferreira, Pétala Souza.

Logo de início, temos o prefácio de Ana Rosa, que induz as leitoras a uma reflexão sobre a ausência de representatividade de mulheres negras em narrativas convencionais, ou seja, produzidas por escritores brancos para leitores brancos. Assim, ler e escrever através de vozes negras traz a oportunidade de imaginar possibilidades e horizontes, dentro e fora da literatura. Isso nos permite entender a proposta do livro, que tem crianças e jovens como público-alvo e reúne histórias abarcam seu imaginário: o sonho de entrar na universidade, as vivências na escola, amizades e romances, dúvidas sobre a carreira profissional e a vida adulta.

O primeiro conto é “Coincidências”, assinado por Maria Ferreira. A narrativa aborda a trajetória da baiana Amara, que, tendo concluído o curso técnico em Biblioteconomia, logo após se formar no ensino médio, aos vinte e dois anos, foi em busca do sonho de cursar a universidade de Letras, em São Paulo. Amara finalmente consegue passar e começa a viver novas experiências; ela encontra amigos que a inserem no movimento estudantil negro da faculdade, no qual começa a estudar mais sobre raça e gênero. Porém, o foco da narrativa é o seu romance com Pedro, um jovem negro que conhece em uma sessão de autógrafos da Conceição Evaristo. Vê-lo ensejou uma paixão à primeira vista, já que Pedro era parecidíssimo com James Baldwin. Logo entendemos que a desilusão amorosa de Amara passa por dilemas bem complexos de relações afetivas vividas por duas pessoas negras. Além disso, há uma discussão importante sobre masculinidade negra e a solidão da mulher negra, que provoca questionamentos: Amara, ao fim, acaba escolhendo não responsabilizar Pedro afetivamente pelo que fez, o que a meu ver se torna problemático, pois sabemos que mulheres negras sempre saem machucadas das relações em que seus sentimentos não são priorizados. Ou seja, Pedro, por mais que carregue toda a questão racial de ser um homem negro e que queira repensar suas relações, pensa somente nele e no que sente, negligenciando os efeitos que seu ato provoca em Amara.

Em “ Carimbos e memórias”, da escritora e compositora Flor.Priscila, acompanhamos Glória Maria, uma menina muito estudiosa, que adora ler e escrever. Ela estuda em um colégio público que passa por muitos problemas, devido a chuvas e enchentes. Moradora de uma comunidade, na qual ainda, infelizmente, não encontra muitos incentivos, Glória se refugia em uma biblioteca para poder viajar e viver novos mundos – e que acaba gerando um novo objetivo para a personagem, que precisa nomear a biblioteca, recorrendo para isso a uma pesquisa com os moradores e com a comunidade escolar. É assim que descobre a nossa grande referência na literatura afro-brasileira, Carolina Maria de Jesus, por quem Glória se apaixona ao ler Quarto de despejo. A personagem passa a perceber uma grande aproximação com as temáticas abordadas por Carolina, sobretudo no que tange à experiência da fome, realidade que percebe ao seu redor. Ao indagar a uma professora sobre o porquê de Carolina não estar nos currículos e sobre a diferença de sua obra em relação a escritores como Castro Alves e Cruz e Souza, Glória começa a perceber que Carolina é importante porque traz a ancestralidade que ela tanto procurava para pensar também a sua escrita, mas também os seus futuros caminhos. É a partir disso que a personagem compreende que nasceu para contar histórias, se comunicar e conhecer o mundo todo. Assim nasce Gloria Maria, a primeira jornalista negra na televisão. A autora consegue trazer, dessa forma, elementos de pessoas reais para um texto ficcional que inspira a tecer histórias com a literatura já escrita por mulheres negras.

“Não existem sinônimos suficientes para o futuro”, da gêmeas bookgramers Isa Souza e Pétala Souza, aposta em uma estética cheia de referências afrofuturistas, para construir uma narrativa que se ambienta em um mundo no qual um vírus se espalhou e contaminou a população, o que ocasionou um isolamento social, através do olhar das personagens Enyin e Aledum. Logo, o conto, que é bem complexo, nos instiga a refletir sobre os comportamento da sociedade, a ideia do individual e do coletivo, como lidamos com sentimentos e emoções, comunicação e hierarquias de divisões sociais.

“Na ponta dos sonhos”, de Amanda Condasi, conta o sonho de Dandara, que quer ser bailarina clássica desde quando, ainda na infância, achou sapatilhas de balé durante o trabalho de sua mãe, no lixão. Mesmo diante de muito preconceito e falta de ajuda financeira para estudar balé, Amanda consegue uma vaga em uma ONG no seu último ano do ensino médio. O conto traz as dificuldades de ser uma menina negra moradora da favela, conviver com uma realidade de tiros diariamente e o desejo de ser alguém que tem direito de sonhar, assim como todos os jovens de seu colégio e suas amigas que, por exemplo, querem seguir caminhos diferentes daqueles que a sociedade impõe às pessoas de classes baixas, como ser jogadora de futebol. No fim, Dandara não só conhece uma bailarina negra, como ganha uma chance de estudar em uma escola de balé só para pessoas negras nos Estados Unidos, tornando-se mais uma menina negra que alcança o seu sonho.

Se, no início do livro, Ana Rosa diz que “A literatura só reproduz algo que está enraizado em nossa sociedade”, no fim, entendemos que ela também tem o poder de combater os lugares pré-estabelecidos e impostos às mulheres negras. Ou seja, a literatura também é lugar de luta e resistência. E, aqui, ela foi o palco que fez com que nossas autoras brilhassem, através de suas potentes vozes negras.

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