Ancestralidade e potência n’Esse cabelo

Djaimilia Pereira de Almeida. Esse cabelo. Teorema, 2015. Edição brasileira: Todavia, 2022.

“Estar grato por ter um país assemelha-se a estar grato por ter um braço. Como escreveria se perdesse o braço?”

Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda, Angola, em 1982. No entanto, adquiriu sua nacionalidade portuguesa enquanto crescia pelos arredores de Lisboa, desde menina. Hoje, ela já se consolidou como uma das mais reconhecidas autoras em língua portuguesa, construindo uma literatura que trata de identidade e de reconhecimento e angariando diversos prêmios com obras como Luanda, Lisboa, paraíso e A visão das plantas.

Em 2015, Djaimilia publicou Esse cabelo, um romance pautado pela necessidade de reflexão acerca do processo de descolonização português em território africano. Mila, a protagonista, é membro de uma família interracial e o fio central que impulsiona toda a narrativa que se desenrola por dezesseis capítulos que, de modo não-linear, apresentam um forte caráter ensaístico e semibiográfico. Enquanto Mila transita por sua infância, é Djaimilia quem se coloca como observadora arguta, reexaminando suas memórias e traçando a linha do tempo de sua própria história, revisitando lugares e pessoas nesse espaço, em busca de entender a si mesma e a sua ancestralidade. E o cabelo, o seu cabelo, é o meio utilizado por ela para realizar tal façanha. Assim, dois aspectos devem ser evidenciados a respeito da obra de Djaimilia.

Em primeiro lugar, o contexto da formação de uma nação pós-colonial em Portugal e em África não significa que essas novas presenças e vozes foram abraçadas e devidamente integradas à vivência nacional. Na verdade, afirmar isso seria ignorar a experiência dos sujeitos apartados e marginalizados em um país que, enquanto celebra o passado com frequência, demonstra pouco aprendizado com a história e falha em incorporar essas vozes ao seu cotidiano. Pelo contrário, muito tempo após essa construção da identidade nacional, ainda nos encontramos diante de uma multiculturalidade suprimida e oculta em um território no qual os sujeitos são colocados em um não-lugar. Djaimilia se coloca como uma dessas vozes, reivindicando um espaço crucial para si. A história que se desenrola em Esse cabelo dialoga diretamente com a relação entre Portugal e África, contada não apenas pelo ponto de vista de uma criança que transita entre dois países, duas nações, duas famílias; os familiares de Mila também se encontram inseridos nessa intrincada relação política e cultural, reforçada pela autora em uma escrita fluida, envolvente e crítica, que expõe o racismo e o preconceito enraizado até mesmo na personalidade dos próprios alvos – como ilustra a figura do avô da protagonista, que representa um dos muitos “africanos que se imaginam portugueses”, como um racismo naturalizado por uma cultura de apagamento:

“Ninguém olhou nunca para ele, este autodeclarado cavaquista, o portuguesão, como ficou conhecido na juventude, que proferia «centra a bola, seu macaco» referindo-se a futebolistas negros e dividia as pessoas por espécies de animais da selva, caracterizando-se a si mesmo enquanto «o tipo macaco»: aquele que aguarda o fim das conversas para exibir a sua sabedoria.”

Em segundo lugar, essa reflexão principal tem como objeto catalisador o seu cabelo: Djaimilia, desde o primeiro capítulo, revela a intenção de contar a história de seu cabelo, e esse elemento central se torna mais um personagem na trama, incitando novas discussões, principalmente, acerca do papel político e social que uma simples parte do corpo pode assumir numa comunidade. Como a própria autora afirma,

“Como escrevê-la sem uma futilidade intolerável? Ninguém acusaria de ser fútil a biografia de um braço […]. A verdade é que a história do meu cabelo crespo cruza a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indirecta da relação entre vários continentes: uma geopolítica.”

Para algumas pessoas, a tematização do cabelo como foco da obra pode parecer banal, mas para os corpos negros que vivenciam a estigmatização diária dos seus cabelos, a situação assume um tom palpável, gerando uma identificação. Não é incomum o cabelo crespo ser colocado como o centro de falas e colocações pejorativas. Ele é quase sempre relacionado ao descuido, à dificuldade, justamente por não se encaixar no padrão estético imposto à mulheres e meninas, desde muito novas. A relação entre essas meninas e seu cabelo está longe de ser simples. É uma relação de aceitação, imposição e não pertencimento. Quantas mulheres se sentem na necessidade de se submeter a procedimentos capilares dolorosos que visam modificar a natureza de seus cabelos, aproximando-os desse frustrante e inalcançável padrão de beleza feminina? Quantas meninas não são ensinadas a enxergar os cabelos como rebeldes e feios? Essas violências se encontram espalhadas pela vivência de mulheres por todo o mundo.

“O tratamento, cuja química abrasiva obriga ao uso de luvas, consistia, segundo me explicaram, em «abrir o cabelo», torná-lo mais maleável. […] Inconformada com o estado do meu cabelo, agarrou num secador e numa escova e, no intervalo de pentear a minha avó, esticou duas madeixas por caridade, para provar que não era um caso perdido. «Está a ver? Não lhe digo que a Mila tem um belo cabelo? É só esticar um bocadinho e – veja!»”

Por isso, quando nos debruçamos para pensar e discutir sobre o cabelo de Mila, não estamos falando apenas de cabelo. Nós falamos e debatemos sobre uma corrente de ideologias que nos ensina a odiar e a repelir nossos traços. O cabelo é colocado, ainda, em um lugar de afetividade, onde por diversas vezes é o centro da teia de lembranças de Mila. As lembranças de sua mãe penteando seu cabelo, o cheiro do cabelo da avó enquanto menina. Todos são espaços mentais que essa parte do corpo, tão “fútil”, como podem alguns afirmar, ocupa em nossas vidas.

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