(Des)construindo a imagem do negro

Ana Célia da Silva. A representação social do negro no livro didático: o que mudou? Por que mudou? Salvador: EDUFBA, 2011.

Capa Final_ A representação social do negroA professora e doutora Ana Célia da Silva nos brindou com o livro A Representação Social do Negro no Livro Didático: o que mudou? Por que mudou?, fruto de sua pesquisa As transformações da representação social do negro no livro didático e seus determinantes, apresentada no ano de 2001 para a obtenção do título de doutora em educação. O livro de que trataremos aqui, publicado em 2011, tem como objeto de estudo a representação do negro nos livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental dos 1° e 2° ciclos, da década de 90.

O interesse de Ana Célia da Silva por essa temática nasceu lá nos anos 70, quando ela começou a atuar como professora de ensino médio e percebeu como alunos de pele branca discriminavam alunos de pele negra e como estes se sentiam envergonhados pela opressão que sofriam, não revidando as atitudes discriminatórias. Nesse aspecto, pensando nos variados tipos de opressões, não houve tanta mudança após quase meio século, visto que a sociedade ainda mantém as estruturas opressoras, de modo a inverter a lógica de culpa versus inocência. Vale ressaltar também o despreparo, observado por ela, dos professores em lidar com essas atitudes, que diziam ser “coisa de criança”, o que nos remete imediatamente a uma frase em que Mandela diz:

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.

É muito interessante essa associação entre aprendizado e ódio criada pelo sul-africano, no sentido de perceber que tudo na sociedade é uma construção; e não estamos falando de uma construção escancarada, que todos conseguem ver: carecemos de sensibilidade e empatia para notar sua forma, porque ela é sutil, está nos detalhes – naquela piada antiga que nosso avô contava, por exemplo. No entanto, ela é internalizada facilmente por seus alvos, que aqui são especificamente as pessoas negras, capazes de captar o racismo estrutural em uma propaganda de 30 segundos. Nada como sentir na pele para aguçar todos os nossos sentidos.

Na pesquisa, Ana Célia analisa as ilustrações e os textos que as acompanham a fim de compreender a maneira como ocorria a representação do negro. Baseando-se, por vezes, em um método comparativo, cotejando esses trabalhos com outros da década de 80, ela notou um grande avanço, já que antes a imagem do negro era totalmente desumanizada, estigmatizada e estereotipada, como podemos ver em sua análise do texto “O palhaço fumaça”:

Os cabelos dos personagens negros não se encontram mais encobertos por um lenço, como se verificava nas ilustrações dos livros da década anterior. É significativa a aceitação do cabelo crespo e dos penteados específicos, que muitas vezes aparecem, como black power, as tranças e os papelotes. Na página 101 há a ilustração de um saci com um rosto bonito, com características do povo negro, sem caricatura.

Ao passo que ocorre esse avanço na representação física e social, há um apagamento na representação cultural, constituindo o que conhecemos como branqueamento do negro. O branco seria o ideal cultural a ser alcançado para uma melhor aceitação em sociedade. O “bom comportamento” estaria diretamente ligado à práticas de pessoas brancas –lembram-se da construção social? Por isso, os próprios pais de crianças negras reforçavam a reprodução desses comportamentos com o intuito “protegê-los” de qualquer tipo de discriminação. Se pensarmos nas religiões africanas, por exemplo, que sofreram e sofrem com toda a associação a imagens demoníacas criada pelos europeus e que se perpetua até hoje com religiões de matriz africana, como o candomblé, percebemos que quando tratamos de intolerância religiosa estamos nos referindo muito diretamente à intolerância vivida por essas religiões. A liberdade religiosa é uma farsa, porque ela se limita à escolha de vertentes do cristianismo, e só é aceito socialmente quem segue os seus preceitos, quem vai por outro caminho é rechaçado. Vamos criar um exemplo concreto: por mais que tentemos padronizá-la, a sala de aula é um ambiente pluricultural; ali existem indivíduos de todos os tipos, adeptos de todas as crenças. Uma criança ao falar de Exu tem a mesma liberdade e aceitação que uma criança que fala em nome do Deus cristão? Definitivamente, o uso do vocábulo liberdade não foi uma escolha honesta, porque não abrange o sentido mais profundo deste termo. Logo, como forma de manutenção de suas crenças totalmente marginalizadas, a população negra cria algumas estratégias, como evidencia a professora:

A imposição da religião católica aos africanos escravizados não resultou em resistência violenta a ela. Os africanos desenvolveram estratégias de sobrevivência das suas religiões de origem, utilizando aquela religião como escudo protetor da sua fé. Utilizando um paralelismo, que muitos confundem com sincretismo, adotam como escudo dos seus Orixás, Voduns e Inkices os Santos católicos cujas características morais e espirituais deles se aproximavam, e os cultuavam nas festas a eles dedicadas. Quando o afro-descendente diz que Oxalá é Jesus Cristo, faz muito mais uma correspondência, uma comparação, do que afirma que aquele seja este. Dessa forma, são duplamente leais à sua religião de origem e aos valores que veem como importantes e complementares na religião que a princípio lhes foi imposta.

Pensar em cultura é pensar em algo que resulta da interação entre indivíduos de uma comunidade. Por esse olhar, é indiscutível que houve assimilação, apropriação por parte da população branca de costumes da população negra; a questão é que não há reconhecimento, tampouco valorização social para esta colaboração cultural. A cultura branca seria o que Pierre Bourdieu, sociólogo francês, denominou como cultura legítima. Em uma sociedade dividida em classes – a classe trabalhadora é formada por maioria negra –, a cultura é um instrumento de dominação, que visa acentuar as diferenças, categorizando-as em superiores ou inferiores, gerando o conceito de violência simbólica, criado pelo sociólogo, que seria justamente a supervalorização de uma cultura em detrimento da outra. A cultura “legítima” está tão arraigada socialmente que atinge o espaço escolar, o que nos permite desconstruir toda a imagem fantasiosa que se tem da instituição como espaço de luta contra a desigualdade e caminho possível para a mobilidade social, já que, na maior parte do tempo, ela está apenas reproduzindo práticas altamente excludentes. Sobre a colaboração negra na literatura:

Em grande parte, a contribuição do povo negro à literatura foi dada por grandes ícones afro-descendentes não considerados como negros. São os mulatos e mestiços, tais como Castro Alves, Machado de Assis, Ruy Barbosa, Gilberto Freire, entre outros. Porém, negros incontestes tornaram-se visíveis por sua obra na literatura brasileira, entre eles, Lima Barreto, Cruz e Souza […] e Luís Gonzaga Pinto da Gama ou Luís Gama, considerado filho de Luísa Mahim, negra nagô e uma das líderes da Revolta dos Malês.

A partir de toda essa constatação de mudança na representação do negro, a professora fez uma pesquisa com os ilustradores e autores dos livros a fim de encontrar possíveis motivações para essa mudança de visão, e uma das encontradas foi o “cotidiano e a realidade vivida”. Um dos ilustradores afirmou que sua perspectiva em relação ao negro foi alterada pelo contato direto com amigos negros de longa data. E aqui temos uma problemática, que, possivelmente, influenciou na representação do negro não estigmatizado, entretanto, sem características identitárias. Analisar a realidade do outro é em si uma questão complexa, porque passa por um véu de interpretação subjetiva, como nós interpretamos uma realidade alheia a nossa, o que faz com que essa descrição fique carregada de impressões pessoais de um observador com valores e visão de mundo muito particulares, não constituindo um retrato fiel da realidade. Em se tratando do negro, essa descrição pode se tornar ainda mais difícil, considerando-se que muitos assumem uma identidade apenas para serem aceitos e respeitados socialmente, o que faz com que essa visão de realidade fique ainda mais deturpada.

Uma representatividade negra mais honesta, tanto em livros didáticos quanto em novelas, comerciais e filmes, é de fundamental importância por colaborar para um processo de autoaceitação e para a construção da autoestima das crianças negras. É necessário que esses espaços desconstruam toda a imagem negativa que criaram em torno dessa população, mostrando a dualidade “bom versus mau” como algo inerente ao humano e que nada tem a ver com raça/etnia. A criança precisa se sentir capaz de alçar voos altos, ciente de que a cor de sua pele não é um fator limitador, pelo menos, não em um mundo ideal. Pensando no contexto da sala de aula, enquanto professores temos o dever de mostrar a diferença como algo enriquecedor, que contribui para a beleza da diversidade cultural e social, enfatizando sempre o respeito e tolerância ao outro; o dever de assumir que somos agentes que influenciam diretamente outras vidas, e que sejam influências positivas capazes de fazer germinar bons frutos. A luta não é do outro, é nossa!

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