Poesia sem amarras

Ryane Leão. Tudo nela brilha e queima. São Paulo: Planeta do Brasil, 2017

tudo nelaMulher, preta, poetisa e professora, Ryane Leão nasceu em Cuiabá, mas vive em São Paulo, e publica suas poesias nas redes sociais há 10 anos, onde possui um perfil chamado Onde jazz meu coração. Integra um projeto para colar lambe-lambes feministas pelas ruas de São Paulo – prática que consiste em espalhar poesias com temáticas variadas, voltadas sempre para o acolhimento e empoderamento de mulheres – e recita seus poemas em saraus e slams da cidade. Aos 28 anos, Ryane, já protagonista de um vasto caminho no mundo das letras e rimas, publica seu primeiro livro: Tudo nela brilha e queima – um compilado de poesias que escreveu ao longo dos anos, abrangendo assuntos como amor, ruptura, identidade, solidão, amor-próprio e relações abusivas, entre outros. Ryane utiliza seus textos para reverberar todas as questões que considera importantes e que não encontrou nos livros que lia.

“Às mulheres infinitas”: é dessa forma que a cuiabana inicia Tudo nela brilha e queima, evidenciando que sua obra é dedicada a todas as mulheres: mulheres da luta, da dor e do amor. As palavras são ferramentas usadas não apenas para externar conflitos internos e anseios da escritora, mas também para inspirar e apoiar mulheres que têm suas questões subjetivas ignoradas por toda a sociedade. Ao pensarmos, por exemplo, em relações abusivas, podemos levantar alguns pontos: que espaço social é utilizado para levantar e discutir essa questão? Como mulheres conseguem se perceber vivenciando esse tipo de relacionamento? Onde mulheres que se descobrem emaranhadas nessas relações encontram apoio? Bom, uma resposta eu tenho: nos versos fortes, duros e sensíveis de mulheres como Ryane, que fazem das palavras um caminho de redescoberta, principalmente – porque se perceber dentro de uma relação abusiva não é algo simples, o processo é lento, doloroso; então, quando uma mulher se depara com uma poesia que descreve a exata situação em que ela vive, é como se o véu que cobria seus olhos fosse jogado ao chão, iniciando um processo de autorreflexão sobre o lugar onde se está e com quem se está; indo mais adiante, onde se quer estar e com quem se quer estar amanhã, gerando o começo de uma desconstrução do amor romântico que segue sendo vendido pela mídia e defendido pela onda conservadora que toma todo o país. Quando, por meio de poesias ou experiências, notamos que outras mulheres vivem as mesmas situações atordoantes que nós, o sentimento é de conforto, não por saber que existem outras muitas sofrendo em cada esquina que passamos, mas por termos a certeza de que o problema não se encontra em nós; aí começamos a luta. Em apenas três versos, Ryane nos deixa um conselho:

não romantize
o que te rasga
o peito.

É sempre importante que levemos em consideração que existem diferentes correntes que nos aprisionam – pelo sexismo, pelo racismo, pela classe social, pela heteronormatividade –, e que elas são mais rígidas dependendo de como essas questões se entrelaçam/combinam. Ao falarmos de Ryane, estamos falando de uma mulher, negra e lésbica, portanto sujeita a uma invisibilização maior, por exemplo, do que se estivéssemos tratando de uma mulher branca e heterossexual; isso leva a poetisa a ter o cuidado, em sua escrita, de emancipar o eu-lírico de marcações associadas àquelas correntes, abrangendo de modo mais amplo as relações afetivas, o que é tanto uma forma de se reconhecer em seus próprios versos, como uma maneira de incluir neles a minoria da qual ela faz parte.

Ainda há obstáculos para a inserção de mulheres no mundo literário – basta olharmos para Academia Brasileira de Letras para percebermos a falta de representatividade que há; é como se mulheres não produzissem, é aquela velha história: para uma mulher ser reconhecida como uma boa escritora ela não apenas tem de escrever bem, ela precisa escrever duas, três vezes melhor que um homem escritor – e essa dificuldade ganha dimensões mais alarmantes dependendo da temática que se aborda. Uma mulher que trata de questões como prazeres sexuais femininos sofrerá uma represália grande, visto que, segundo a sociedade, a mulher não está aqui para sentir prazer, apenas para oferecê-lo. Por isso, sempre que me deparo com uma poesia erótica produzida por uma mulher, considero um ato revolucionário duplo; penso: “não queremos apenas salários igualitários, queremos ser saciadas quanto aos nossos desejos sexuais e vamos gritar, gritar até que nos ouçam”; sinto que cada vez mais estamos mais exigentes em tudo que diz respeito ao nosso prazer, ao nosso corpo. Servindo-nos de grande exemplo, temos a música Lalá, da rapper Karol Conka – se ainda não ouviram, ouçam! –, que faz uma dura crítica à maneira como o prazer feminino é menosprezado e posto em último plano, abordando, especificamente, o sexo oral. São maneiras incríveis de se romper barreiras que pareciam intransponíveis; e sim, encontraremos essa voz nas poesias da Ryane, em que faz uso de analogias entre o corpo humano e elementos da natureza. Notem como, ao ler sua poesia, sentimos que seus personagens se deliciam e se saciam juntos:

vem chapar comigo
arrancar meu vestido
apertar minhas coxas
vem revolucionar seu corpo
na minha boca
vem se encharcar
nas minhas correntezas
molhar seus dedos
com meu gosto
e se perder
na minha respiração
descontrolada

te convido a escorregar
suas cicatrizes nas minhas
refazer nossas linhas.

Para finalizar, é fundamental falar da serenidade proporcionada pelas ilustrações de Laura Athayde – graduada em direito, que hoje se dedica à ilustração –, que conversam harmonicamente com os versos de Ryane, gerando uma obra capaz de atrair a nossa atenção para sua sensibilidade singular.

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