Angela Davis. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016 [1981].
Após 35 anos de sua publicação original (em 1981), a obra Mulheres, Raça e Classe, que reúne textos com diferentes enfoques e temáticas escritos por Angela Davis, foi finalmente traduzida e lançada no Brasil em 2016. Filósofa, atualmente professora emérita do departamento de estudos feministas da Universidade da Califórnia, Davis ficou mundialmente conhecida na década de 1970 por sua militância no Partido Comunista dos EUA e no movimento dos Panteras Negras, sobretudo no período em que ficou presa sob acusação de homicídio e conspiração – ensejando a campanha “Free Angela Davis” [Libertem Ângela Davis].
A principal premissa subjacente aos textos reunidos no livro é que as diversas opressões atravessam os indivíduos de diferentes maneiras, sem, no entanto, se anularem ou estabelecerem qualquer hierarquia entre si. Assim, tem-se que o gênero, a raça e a classe caminham juntos, um necessariamente interferindo no outro. Tido como verdadeiro marco teórico para o movimento feminista interseccional, o livro analisa a cegueira constante do feminismo branco e burguês no âmbito do movimento sufragista: a despeito da importante aliança existente entre a causa das mulheres e o movimento abolicionista, diversos eram os momentos em que o racismo demonstrava sua faceta mais cruel, seja através de discursos ou estratégias de luta. Para exemplificar, Davis traz à tona alguns trechos nos quais as feministas brancas afirmavam que o homem negro se equiparava ao homem branco na opressão sexista, e, portanto, se lhe fosse permitido o direito ao voto antes do sufrágio feminino, seria mais uma (suposta) razão para que a supremacia masculina se intensificasse.
Por outro lado, as mulheres brancas de classe média desejavam romper com o ideário de feminilidade presente à época, para que os estereótipos de gênero dessem lugar à igualdade nos direitos civis. Pouco se falava sobre a recente libertação das mulheres negras, que nunca possuíram esta imagem, pelo contrário: a escravidão lhes retirou toda a feminilidade e a humanidade, a partir do momento em que eram frequentemente açoitadas, estupradas pelos senhores brancos e exploradas, tais quais seus companheiros homens.
O povo negro foi tratado como coisa e propriedade dos fazendeiros, jamais como gente – e, nisso, não havia diferenciação entre homens, mulheres, crianças etc. O movimento feminista que se insurgia pelo fim da escravidão parecia ignorar as peculiaridades das mulheres que haviam acabado de deixar o sistema de exploração escravocrata, tratando a classe “mulher” como homogênea e equânime. Nesse sentido, Angela ressalta que as mulheres negras foram e, ainda com o fim da escravidão, continuaram sendo a base do sistema de exploração capitalista, e, quando libertas, tornaram-se domésticas das famílias ricas e brancas; ou seja: pouco se alterou em relação à dinâmica existente na escravidão (fato que perdura até hoje, inclusive quando se analisa a realidade de países como o Brasil).
Como consequência, os argumentos em prol da conveniência (para as líderes brancas do movimento sufragista, as mulheres deveriam ter direito ao voto antes do homem negro, que estava prestes a conquistar seus direitos civis) e em detrimento da inclusão das mulheres negras no movimento, as afastaram das associações que surgiam e, por óbvio, do feminismo branco que se expandia, tendo o sufrágio feminino como pauta única. Esse cenário, então, deu origem à união entre a classe trabalhadora de um modo geral e a luta antirracista que estava voltada, sobretudo, contra as prisões arbitrárias e contra os linchamentos de homens negros por gangues racistas. Aqui, fica evidente que as mulheres negras, diferentemente das brancas, enxergavam na classe trabalhadora uma possibilidade de unificar a luta, não de acriticamente segregar os homens. Foi nesse momento que se proliferou o sindicalismo e também o comunismo entre o proletariado norte-americano. As lutas foram intensificadas contra um inimigo comum e fonte de todas as opressões: o capitalismo.
Na sequência, a autora descreve detalhadamente a trajetória individual de inúmeras personalidades relevantes para a luta feminista e antirracista que surgia. Impressiona perceber o quão foram excluídas do feminismo branco as mulheres brancas que falavam abertamente sobre o racismo e se levantavam em defesa das mulheres negras. Cabe destacar que esse é o modus operandi que prevalece até os dias atuais, isto é, por vezes as pautas raciais são apagadas e não sobra espaço para as mulheres negras nos campos mais hegemônicos. Ainda que o racismo não seja tão escrachado como era nos discursos exemplificados por Davis, podemos analisar diversas situações em que a branquitude nos silenciou meramente em nome de uma suposta “unificação” do movimento feminista.
Angela aborda o também atual mito do estuprador negro, que levou a diversos linchamentos públicos e perseguições de homens negros. A crença coletiva era em torno de uma figura masculina, negra e com desejos sexuais animalescos, naturalmente predadora de mulheres brancas indefesas – já que as mulheres negras não eram vistas propriamente como mulheres. Em razão disso, diversas famílias foram desestruturadas devido às falsas acusações de estupro que se difundiam nos EUA. A autora destaca que nunca houve preocupação em descobrir a causa geradora dos estupros recorrentes: a busca era por quem culpar. E, assim, homens brancos quase nunca eram acusados de serem estupradores, porque eram vistos como “civilizados” e “homens de bem”, ideário que permanece até os dias atuais (ironicamente, pouco se falava sobre os estupros constantes de mulheres negras pelos seus empregadores brancos). Assim, pode-se dizer que o termo “cultura do estupro”, cunhado recentemente, por muitas vezes faz perdurar o antigo mito do estuprador negro, ao buscar causas e soluções superficiais para a problemática do abuso sexual dos corpos femininos.
Nos capítulos finais, Angela Davis argumenta em torno das políticas públicas para controle de natalidade, reivindicada pelos estados com objetivos racistas e eugenistas. Por inúmeras vezes, o movimento sufragista compactuou com ideias para salvar a raça branca da “ameaça” perpetrada pelas minorias étnicas. A discussão sobre aborto e métodos contraceptivos era algo progressista e necessário; entretanto, foi capitulada pela eugenia que se difundia à época. Por outro lado, a autora também discorre sobre o papel social pertinente às mulheres, as transformações e mudanças de paradigma nos serviços domésticos, outrora “assunto de mulher”.
Conforme Davis brilhantemente demonstra, a polêmica questão do lugar de fala deve ser acompanhada por uma reflexão sobre o contexto histórico, cultural e político que nos traz aos dias atuais. Como marxista, conclama pela unificação das estratégias de luta, sem, no entanto, perder de vista as pautas identitárias e interseccionais. Por mais que façamos quaisquer esforços de abstração, o gênero, a raça e a classe a que pertencemos moldarão a lente através da qual enxergaremos e interpretaremos as questões à nossa volta. Não se trata, aqui, da defesa de uma “autoridade de fala”, como muitos costumam confundir, mas tão somente da percepção de que nosso lugar no mundo nos moldará como sujeitos que serão atravessados pelas opressões de diferentes maneiras. Urge percebermos que determinados grupos sociais foram excluídos, marginalizados e tiveram seus direitos negados, e isso influenciará na forma como estes direcionarão as suas lutas. Entretanto, a obra de Angela, tão atual, vem para nos mostrar que temos mais a unir do que a segregar. À luta!
Sobre a autora
Giulia da Silva Soares é graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Natural de Mangaratiba, no interior do Rio de Janeiro, hoje mora em Campo Grande, na Zona Oeste. É feminista negra, diretora do Centro Acadêmico Luiz Carpenter e participante de diversos movimentos e coletivos feministas desde a época da escola.