Herança e memória em “Ponciá Vicêncio”

PONCIAPonciá Vicêncio, de autoria de Conceição Evaristo e publicado em 2003, é um romance inegavelmente rico, visto que proporciona uma série de reflexões raciais e sociais importantíssimas para uma sociedade que ainda insiste em ignorar a sua herança escravocrata e racista. A obra se desenvolve a partir de uma viagem pelos meandros das memórias da protagonista Ponciá e de seus familiares, apresentando, de modo impactante e lírico, os traumas psicológicos e sociais sedimentados na vida de personagens afetadas direta e indiretamente pelo período da escravidão brasileira.

Oscilando entre momentos poéticos e sublimes, e cenas fortes, impactantes e perturbadoras, já que ultrapassam a ficção e se aproximam da realidade, observamos um enredo que vai na contramão da tradição literária, porque tem como protagonista o negro sob o olhar de um narrador que não possui um afastamento da realidade narrada. A narrativa se estabelece a partir da inversão de lugares: enquanto nos romances tradicionais a trama é centrada em personagens brancos e os negros possuem papéis secundários, em Ponciá Vicêncio os negros assumem os papéis principais e os brancos, os papéis secundários. Em resumo, o romance permite uma reflexão sobre fatos sociais e históricos e sobre suas implicações sob a ótica do dominado, sem interferências do olhar do dominador.

Além disso, a obra é constituída por pequenos capítulos que apresentam as memórias dos personagens e os fatos neles contidos não possuem uma ordem cronológica, pois são apresentados segundo a perspectiva do narrador e parecem acompanhar os constantes afastamentos da protagonista na fase adulta: Ponciá gastava boa parte do seu tempo retornando ao passado, rememorando tudo que fora e pensando em tudo que poderia ter sido. Talvez esse movimento constante de retorno seja uma maneira de preencher as lacunas da existência de Ponciá.

O narrador onisciente que habita as memórias da família Vicêncio, especialmente as memórias de Ponciá, transmite essas memórias para o leitor através de dois movimentos interessantes: ao mesmo tempo em que se distancia do objeto narrado, aproxima-se das personagens através da oscilação do foco narrativo. Esse movimento ocorre através da exposição singular da experiência individual dos personagens e da reflexão sobre esses fatos numa perspectiva de experiência coletiva. É válido salientar que as experiências apresentadas no romance, quer sejam individuais, quer sejam coletivas, refletem as vivências fora da diegese da obra. No fragmento abaixo, nota-se a perspectiva do narrador sobre situações da vida de Ponciá que são comuns a outros indivíduos (ficcionais ou não) que sobrevivem na mesma condição de pobreza que a personagem:

Bom mesmo que os filhos [de Ponciá] tivessem nascidos mortos, pois assim se livraram de viver uma mesma vida. De que valera o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? (…) A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida.

O trecho acima expõe a crítica feita pelo narrador sobre uma realidade de desesperança dos negros refletida na personagem Ponciá. A constatação de uma realidade amarga e praticamente imutável se resume na constatação de que o sofrimento da escravidão persiste e insiste em circundar a vida dos negros. Percebe-se que o narrador conduz a narrativa partindo das reminiscências de Ponciá e parece, constantemente, convidar o leitor a estabelecer reflexões acerca dessas memórias. O sofrimento das personagens não é apenas compartilhado com o narrador: ele o partilha fundindo a sua voz à voz dos personagens, promovendo, assim como no fragmento acima, uma justaposição entre o objeto do discurso e o seu emissor; o narrador transforma-se em participante da narrativa na medida em que dialoga, reflete e opina sobre a história.

Como já foi dito há algumas linhas, as histórias sobre a família de Ponciá Vicêncio são apresentadas a partir das memórias da protagonista e de seus familiares. Essas memórias são encadeadas no romance numa espécie de flashback, que apresenta as angústias e as vivências dos personagens de modo não-linear. Embora não exista uma cronologia crescente ou decrescente das circunstâncias narradas, os flashes das memórias vão se encaixando numa espécie de quebra-cabeça que, ao final da narrativa, apresenta uma imagem social. Essa imagem não representa apenas um aspecto social do romance, mas também do Brasil. O projeto de dizer dessa obra de memórias pauta-se em uma dualidade que se alterna ao longo da leitura do enredo: as relações entre ficção e realidade. Essa alternância ocorre por meio das rememorações feitas sobre a vida de Ponciá, evidenciando um passado histórico de escravidão que não pode ser dissociado das desventuras da existência da personagem e das mulheres e homens negros brasileiros. Ou seja, a memória no romance não pode ser compreendida apenas como um elemento individual, mas também como uma memória coletiva que apresenta, liricamente, um recorte social sobre um grupo que sofreu (e ainda sofre!) as consequências da escravidão. Nesse sentido, ficção e realidade se imbricam porque a linha que vai dividi-las é demasiadamente tênue. O objetivo não é apenas relembrar um momento histórico, mas observar as chagas deixadas por ele a partir das memórias daqueles que, por imposições sociais, ainda são obrigados a carregar tais feridas que nunca foram fechadas. Ademais, a presença da memória coletiva (do povo negro) e individual (de Ponciá) propõe uma discussão sobre um passado que não pode ser ignorado, mas também pensar no que esse passado representa para o presente e como ele se perpetua, sob formas distintas, dentro da sociedade. As estórias narradas no romance, embora pareçam individuais, cabem dentro do coletivo e vice-versa. Isto porque há uma preocupação com questões mais próximas do real, conferindo ao romance um constante questionamento e denúncia dos grupos sociais nele representados.

Há nas memórias de Ponciá e de seus familiares muitas situações que geram fortes discussões sobre a situação do negro brasileiro. Como já foi exposto no parágrafo anterior, considero o romance como uma obra de denúncia, na medida em que ele evidencia uma vida pós-escravidão colonial numa sociedade em que a escravidão, sob uma nova roupagem, adquire características mais modernas e mais sutis e, ao mesmo tempo, um pouco próximas da época colonial (principalmente se pensarmos nas relações assimétricas entre indivíduos de tons de pele diferentes). Além disso, o romance expõe o cruel cotidiano dos excluídos, marcado, principalmente, pela injustiça social, pobreza e pelo desamparo. Dentro dessas questões, se estrutura uma série de denúncias sobre fatos que acontecem desde o fim da escravidão até os dias atuais: exploração nas áreas rurais brasileiras, onde pessoas vivem em um regime de semiescravidão; a condição em que vivem os negros nas zonas rurais e urbanas; a violência contra as mulheres (vividas por Ponciá e Bilisa); a injustiça social (que atinge todos os negros, sem exceção de gênero); e a vida nas favelas.

Além das memórias que incidem sobre a vida da família Vicêncio, há outra marca que os vincula ao passado – e talvez essa seja a melhor metáfora do romance sobre a herança que Vô Vicêncio havia deixado para Ponciá: o sobrenome. A escolha de um nome ocorre durante um processo arbitrário, pois, afinal de contas, não temos um nome, mas o recebemos, uma vez que, logo após o nascimento, somos incapazes de fazer essa escolha. O nome é preenchido por fragmentos de memórias e da relação que se estabelece com o passado, ou seja, um responsável legal escolherá para uma criança um nome que esteja vinculado a alguma memória, fato já ocorrido ou pessoa que já foi importante para ele, para seus familiares, etc., por exemplo. Em suma, ao recebermos ou darmos um nome, estabelecemos um vínculo com passado. A família Vicêncio entrou para a vida presa a um passado e a um nome que nunca lhes pertencera:

Ponciá Vicêncio sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe, todos continuavam Vicêncio. Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor, de um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens.

 

Essa metáfora do sobrenome é muito forte. A família Vicêncio carregou consigo a marca da dominação por várias gerações. Essa não é apenas a marca do silenciamento de uma história familiar, mas também é marca de posse. Os Vicêncio por muito tempo não foram donos da sua história, nem da própria vida. Mesmo após a assinatura da Lei Áurea, mesmo com um falso clima de liberdade, a força de trabalho, os materiais produzidos, a vida daquelas pessoas ainda estava sob o controle dos descendentes do coronel Vicêncio. E nesse momento do romance, é impossível não pensar que muitos de nós, homens e mulheres negras, podemos carregar até hoje um sobrenome que não pertence à nossa história e que nos foi imposto.

Quando Ponciá e seu irmão, Luandi, partem para a cidade em busca de nova vida, eles saem do domínio dos “donos das terras e dos homens” da Vila Vicêncio buscando o controle das próprias vidas. Entretanto, ao chegar à cidade, ambos perceberam que essa busca por liberdade não se constitui por um processo simples. Enquanto na vila eles continuavam na condição de escravos de um grupo de pessoas brancas que os submetia a uma dominação, na cidade não é apenas um grupo que tenta subjugá-los, mas toda uma estrutura social que procura, constantemente, mantê-los em condição de submissão e miséria. É a partir do deslocamento da zona rural para a urbana que os personagens buscam reconstruir suas identidades, ainda que não consigam construí-las completamente ao final da narrativa. Ponciá, quando saiu da Vila Vicêncio, buscava uma vida diferente da que a mãe levara: ser dona de casa longe da exploração dos brancos, ter filhos e talvez até um casamento mais feliz, com um marido mais presente; no entanto, a jovem encontrou uma nova forma de exploração da força de trabalho, não teve filhos porque sofreu sete abortos e também não viveu um casamento feliz porque, além da condição de quase miséria, Ponciá era obrigada a conviver com a violência doméstica. Nas palavras do narrador, “Ponciá havia tecido uma rede de sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande buraco, um grande vazio. ”. Luandi Vicêncio também almejava uma vida melhor na cidade; desejava ter “voz de mando” igual aos brancos que se achavam donos das terras e das pessoas da Vila Vicêncio. Queria ser soldado, mas assim que conquistou a patente tão sonhada, logo percebeu que mesmo assim continuava submisso a outras vozes de mando. A namorada de Luandi, Bilisa, fez o mesmo movimento de deslocamento da roça para a cidade e aqui também encontrou uma situação de exploração: no trabalho doméstico, os patrões se aproveitavam da sua força de trabalho e do seu corpo, uma vez que o corpo de Bilisa era utilizado como distração sexual para o filho dos patrões; na zona, a jovem desejava fazer dinheiro rápido para poder buscar os familiares no interior, porém quase todo o dinheiro que recebia ia para as mãos da cafetina e do segurança. As frustrações na cidade, oriundas das injustiças sociais, da exploração e do movimento constante de reduzir a existência negra a uma condição de subalternidade evidenciam como a existência negra torna-se sufocante nas vivências apresentadas no romance e leva as personagens a situações extremas de desespero.

Conceição Evaristo produziu um romance tão sensível, tão dolorido e ao mesmo tempo tão sublime que é impossível lê-lo e não sentir a dor que as injustiças sociais provocam, ao mesmo tempo em que é improvável ler a obra e não se emocionar com a força dos laços familiares e o sentimento de união que conecta os Vicêncio. Toda a trajetória dos personagens é marcada pela preocupação com a manutenção do vínculo afetivo com os seus. O retorno da família Vicêncio à Vila, no último capítulo, é marcado pela tomada de consciência do que seria escrever uma nova história, um destino diferente que Ponciá e Luandi tanto buscaram ao longo da narrativa: é fundamental que a herança deixada por Vô Vicêncio – herança de um passado de escravidão que os negros, fictícios ou não, carregam – esteja viva na memória de todos para que isso seja uma força que impulsione a mudança, um desejo de construir outro destino; e, para construir um outro destino, é necessário não se isolar, mas buscar união porque, parafraseando as palavras de Conceição, uma vida é um grão de areia no fundo do rio que só vai tomar corpo, crescer, se se tornar argamassa de outras vidas. Essa é uma das metáforas mais bonitas do romance, porque é uma consciência que todos nós precisamos ter, afinal de contas, só poderemos construir uma sociedade mais igualitária e com menos injustiça social se pensarmos no todo. Acredito que nenhum leitor fique indiferente após a leitura de Ponciá Vicêncio, uma vez que é um romance transformador, capaz de escancarar uma realidade e de fazer refletir sobre ela no momento da leitura e depois também. Trata-se de uma leitura necessária, visto que a obra em si é uma argamassa, matéria-prima de mudança para todos os seus leitores.

2 comentários em “Herança e memória em “Ponciá Vicêncio”

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  1. O livro é maravilho, como todas as palavras-poesia-reflexão-memória da Conceição são. Sua análise foi ótima, contundente, muito rica e tocante. Obrigada!

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