Nina Rizzi. Geografia dos Ossos. Lisboa: Douda Correria, 2016.
Nina Rizzi é escritora, pesquisadora, tradutora e poeta. Entre as suas diversas obras publicadas estão Tambores Pra N’zinga (poesia, Editora Multifoco, 2012); Caderno-Goiabada (prosa ensaística, Edições Ellenismos, 2013); Susana Thénon: Habitante do Nada (tradução, Edições Ellenismos, 2013); A Duração do Deserto (poesia, Ed. Patuá, 2014); Romério Rômulo: ¡Ah, si yo fuera Maradona! (versão em espanhol, Edições Dubolsinho, 2015); Óscar Hahn: Tratado de Sortilégios (2016). Um dos notáveis frutos dessa produtividade é sua terceira coletânea de poemas, publicada em 2016, intitulada Geografia dos Ossos. Nela, o cotidiano recebe forma, gera recursos com contornos variados à poética de Rizzi, o que lhe garante uma dicção bastante peculiar. Na voz dos sujeitos poéticos de cada poema, há um olhar que parte do particular e que incide no geral, evocando reflexões que quebram o transcorrer do consensual, natural e naturalizado do cotidiano. Essa característica é marcante e lhe faz ir na contramão da tendência contemporânea ao enclausuramento em si mesmo. Os eus que percorrem sua obra não são apenas atravessados passivamente pela condição e pelo pensamento da sociedade na qual se inserem, mas também se mostram ativos por não se limitarem a descrever o sistema, e sim por propulsionar impactos, não somente pelas palavras de baixo calão trazidas, mas também por sua postura diante desse fluir “anti-natural” dos fatos do dia a dia.
Desse modo, a autora acaba por atravessar e ultrapassar esse pensamento e as imposições bem emblemáticas que recaem sobre figura feminina, em nosso meio. Ao tangenciar questionamentos acerca da condição da mulher na sociedade, Rizzi dialoga fortemente com uma postura feminista, revelando o sexismo, com uma abordagem na qual induz à reflexão que precede o combate. Dentre essas perspectivas, há uma ponderação no princípio do livro, por meio do poema sem título, por ser mulher, o qual acarreta questionamentos frente ao devir puta – inserindo, nesses temas, um que sobressai: o que antes é um homem ao definir uma mulher como puta? Em paridade de tom, o poema e danço tango com você expressa, na primeira estrofe:
eu li nas tls do mundo que mazombos e mazombas
acham bem normal um estupro, que as mina tão se entregando
assim facim facim
e eu lembro que os afegãos estupram mulheres de burca
porque elas exageram no kajal e rímel
eu ouço que uma menina de 8 dá rindo o que eu não dou chorando.
Esse fragmento já torna possível observar e ampliar as múltiplas formas de naturalização do discurso machista, desde a legitimação cientificista às falas opressoras tidas como tão prosaicas. É por meio de falas como essas, bastante fluidas, que percebemos um trabalho com a linguagem que, muitas vezes, é empregado sem pontuação, com todas as palavras em minúsculas, a fim de não destacar o diferencial nem a importância de um nome próprio, e sem marcação de diálogos, estratégia que constrói o texto como um discurso indireto livre. Ademais, por vezes, observa-se uma carga da linguagem coloquial típica de um grupo social do meio urbano, por exemplo, em “as mina”, que se relaciona ao cenário em que essas falas se estabelecem. Outro procedimento que se faz muito presente, de alta expressividade, é o uso de neologismos, a inovação na formação de palavras, que evoca uma necessidade para além do que está estabelecido como recurso de expressão no léxico da língua portuguesa.
Em virtude desse ritmo fluido, é pertinente destacar o neologismo “fluxionismo”, presente em Geografia dos Ossos, no poema (quase prosa) em lugar de documento com foto: “e enfim me deito pensando pensando num poema que seja mais que fluxionismo nos hollow men”. A meu ver, esse verso pode ser considerado o mais representativo de toda obra: nesse eu lírico, evidencia-se a tentativa de empreender um processo de criação literária que exceda o “fluxionismo” (palavra formada com um sufixo de carga negativa nesse contexto) dos homens ocos que percorre todo o livro. Voltando aos aspectos formais, a leitora depara-se com palavras e expressões que não fluem naturalmente e tampouco são aceitas no imaginário social, mas que são inseridas nesse discurso literário – para tratar, por exemplo, da temática do aborto feito por conta de um estupro. Tal polêmica é trazida no segundo e no terceiro versos desse poema: “nunca joguei candy crush mas lembro ano passado quando precisei fazer um aborto”. Essa exposição confusa gera, em um primeiro momento, incompreensão, pois essa questão somente receberá explicações ou contextualizações ao longo do poema. Por isso, o efeito imediato da leitura pode aproximar essa construção de um recurso de banalização quando, ao evocar um jogo que apresenta combinações de doces, anuncia-se o ato de abortar como se não se desse importância ao doloroso impacto da atmosfera social negativa que gira em torno dessa temática.
Entretanto, é essa negatividade que instaura a denúncia da incidência de uma mulher que sofre violência virar ré, cabendo-lhe a culpa unilateral. O eu lírico, manifestadamente feminino, expõe em seu relato que para “as doutoras um aborto é muito sério como você pode ser atacada que falta de juízo no benfica e seus becos à essa hora”. Esse excerto permite aclarar aspectos que envolvem a recepção da leitora, por intermédio da fusão entre a configuração da linguagem e os conteúdos abordados, uma vez que pode ser gerado um efeito de estranhamento, de uma confusão mental do eu lírico-narrador por se tratar de temáticas tabus, incomuns na tradição literária. Assim, tenta-se dar fluidez, na construção de um poema, a algo que não flui na sociedade. Isso nos permite adentrar nos eus femininos dessas sujeitas que dão vozes às reflexões e aos reflexos da sociedade. Esses exemplos, e outras questões apresentadas neste ensaio, demonstram que a poética de Nina Rizzi configura um trabalho diferenciado com a linguagem, a qual, por vezes, assemelha-se a uma experimentação, cujos efeitos se fazem presentes no ato de recepção do texto.
Depois da apresentação de algumas temáticas que acercam a condição feminina em nossa sociedade, vale salientar que Geografia dos Ossos não se circunscreve apenas por esse viés, uma vez que também são abordadas muitas outras questões que expõem as desigualdades e as injustiças sociais. Exemplos patentes disso podem ser encontrados nos poemas a morte do favelado, réquiem e de comer e saltar cambalhotas sobre o muro, uma água morna pra me cobrir os cornos. O primeiro revela “os buracos vazios/ trinta e uma mil balas para pacificação”, cujas marcas feitas pelas balas das armas são irreparáveis e transpassam vidas, vidas “invisíveis” pela vulnerabilidade que impõe o Estado. No segundo poema mencionado, o eu lírico, que se manifesta como um flâneur, promove reflexões, marcadas por parênteses, como se a leitora estivesse em um observatório de um íntimo, então surgem evidenciando os contrates entre a favela e os hotéis próximos em uma cidade:
“mas penso antes na avenida do hotel essa fronteira entre uns
miseráveis do morro, não uma favela clássica, mas ainda uma
favela e sua gente que desaba com a chuva, santa terezinha, e na
outra margem o hotel e sua gente tão rica, tão requintada”
É importante ainda perceber outra tônica da literatura de Rizzi, associada à autorreflexão do fazer poético, já que muitos de seus poemas parecem trazer aos olhos da leitora o processo e o desejo de uma determinada criação poética, como se consegue observar logo prontamente em alguns títulos de poemas e no decorrer de cada um deles, tais como, tipitaka, em lugar de poesia e arcada auschivitz, poema impossível. Dessa maneira, proporciona-se o tom autorreflexivo quando a obra é capaz de repensar, por intermédio da própria poesia, o trabalho poético, cuja metalinguagem lhe atribui sentido. Ademais, são perceptíveis diálogos e referências implícitas e explícitas que remetem a outras obras literárias, como acontece em depois de um título de pierre reverdy. As referências de múltiplos domínios culturais e históricos e epígrafes ecoam na leitura dos poemas, de modo que seus significados se erigem como chaves que intrigam e levam a leitora a investigar, a conhecer mais sobre essas referências que, quando compreendidas, colaboram para a construção de sentido de cada poema. De igual maneira, a compreensão também pode ser estabelecida por meio de algumas ilustrações presentes nessa obra literária, por fazerem parte de mesma uma unidade poética, tanto de sentido como de significação.
Outro ponto também relevante é que alguns poemas – por exemplo, o intitulado anotação no caderno azul de teoria da literatura 2 –, especificamente por conta da informação localizada na segunda estrofe (“uma mulher me fulminou com os olhos./ era professora. era quarta-feira.”) poderia levar a crer, em uma primeira leitura, que esse conteúdo possui relação biográfica. Alguns poemas conferem essa impressão por apresentarem relatos que aludem a fatos com datas, sugerindo um pacto referencial com uma realidade possivelmente vivida pela autora. Todavia, são desconhecidos os limites e as aproximações entre o real e o ficcional, isso pode ser compreendido à luz do que já foi mencionado sobre a experimentação literária característica da produção de Nina Rizzi.
Essa exposição não busca limitar as variadas formas de se perceber e receber a obra Geografia dos Ossos, mas apresentar nuances de um inquestionável e sólido trabalho literário. Essa obra não participa inconscientemente da engrenagem uniformizadora; ao invés disso, assume uma postura de resistência ao “fluxionismo” dos contrassensos comuns disseminados na sociedade. Rizzi não perfaz sua obra apenas por uma representação sociocultural: ela vai muito além disso, ao fazer uso de uma linguagem de dicção marcante e bem trabalhada, unindo habilmente forma ao conteúdo, o que delineia seu projeto como arte. A literatura de Nina Rizzi, ao transgredir a naturalização, transmite um engasgo ao expor temas que apenas poderiam ser tratados com a sensibilidade de quem os vivencia. Por essas características, a obra da escritora gera um estranhamento na aceitação consensual de nossa formação histórica, causando incômodos às lentes pelas quais enxergarmos o mundo, fazendo vir à tona o caráter sombrio e marginal do nosso presente.
Sobre a autora
Yasmin Cibelle Soares da Silva Alves é graduada em Letras e mestranda em Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Carioca da gema, feminista negra, foi criada na Praça Seca e em Irajá. Admiradora da literatura e apreciadora da literatura brasileira contemporânea.