Construindo a militância: na periferia e na sala de aula

29663681_2076257862618351_2087378075_nEscrever este texto foi um grande desafio. Muitas vezes agimos como que mecanicamente e acabamos por não refletir muito sobre o que está por detrás de nossas atitudes, nossas crenças, nossas concepções, nossas escolhas, nossas lutas, nossas apreensões.

Crescendo em uma sociedade racista, percebi desde sempre que eu era a outra, a negra. Todo o tempo eu era lembrada disso. Sempre que alguém queria me ofender, falava da cor de minha pele negra e de meu cabelo crespo. Não sabia, no entanto, como reagir a isso. Então desde cedo comecei a fazer procedimentos estéticos como relaxamento, escova, chapinha, tintura, para mudar a forma de meus cabelos e torná-los mais “aceitáveis”. Assim, eu acreditava que mudando minha aparência, o problema seria resolvido.

Ao final da adolescência, me deparei com uma questão que despertou em mim a consciência para as questões de gênero. Frequentava as reuniões de uma determinada religião e vi que minhas amigas mais próximas estavam abrindo mão de sua profissão e dos estudos para poderem se casar, se dedicando totalmente à religião e ao casamento. Fiquei muito angustiada vendo aquilo e decidi que aquela religião não era para mim, vi talentos se apagando e jovens lindas ofuscando seu brilho para servir aos maridos.

Entretanto, foi somente ao adentrar a universidade que despertei para a questão da militância. Lá conheci jovens fortes, independentes, que me ajudaram a trilhar esse caminho de luta contra a opressão. Não participei diretamente do movimento estudantil durante os quatro anos de PUC, mas o centro acadêmico foi uma espécie de laboratório para mim. Ver minhas colegas, que mais tarde se tornaram queridas amigas, lutando por bolsas, pelo direito da mulher ao corpo, pelo direito de jovens de periferia como eu habitarem aquele espaço, me introduziu a um novo mundo.

Acredito que as redes sociais tiveram um papel fundamental no desenvolvimento de minha militância. Conheci instituições como as Blogueiras Negras, virei leitora voraz dos textos publicados e descobri que eu também poderia compartilhar minhas experiências, minhas leituras, senti que encontrei um espaço em que fui acolhida e poderia me expressar sem medo.

Pensando também em minha atuação profissional, percebo que trabalhar com jovens de periferia como eu que estudam em escola pública abriu muito meus olhos. Tenho pais professores e a leitura sempre fez parte de minha vida, mas na escola encontrei duras realidades, percebi como a vivência cotidiana de muitos jovens, principalmente aqueles considerados mais “problemáticos” no ambiente escolar, é marcada por machismo, racismo, pobreza, vícios, dentre outros. Comecei a questionar a instituição escolar, os currículos, e decidi construir com esses jovens uma educação que seja crítica, emancipatória.

Não tem sido fácil, principalmente porque vivemos em uma sociedade marcada por preconceitos, e infelizmente em determinados momentos nos vemos reproduzindo comentários que estão permeados por estereótipos dos mais diversos tipos. Minha preocupação principal é em fazer sempre uma autorreflexão e mudar primeiramente a mim, porque percebo que o exemplo fala alto, principalmente para os mais jovens.

Percebo que uma grande arma de luta é a palavra. Pessoas machistas, racistas, homofóbicas, misóginas, preconceituosas de um modo em geral, se sentem muito à vontade fazendo comentários ofensivos porque geralmente as pessoas ou riem, ou ficam constrangidas e com medo de responder à altura, ou não se importam. Uma grande estratégia é a desestabilização, o questionamento. Analiso muitas falas que ouço dos alunos, ou na mídia, além de exemplos práticos de discriminação, e faço uma reflexão, buscando entender qual concepção está por trás desses comportamentos ou dessas falas.

A educação ainda é nossa ferramenta principal de luta, e por vezes pode parecer um processo um pouco vagaroso, mas é difícil querer que construções ideológicas que levaram centenas de anos para se constituir caiam por terra rapidamente. Hoje, após entrar em contato com escritore(a)s que propõem uma visão descolonizada do mundo, seleciono melhor o conteúdo que apresento aos estudantes e converso muito sobre a importância de nossa atuação como seres políticos.

Muitos de nós crescemos acreditando que as coisas são previamente estabelecidas por uma simples razão de ser, mas hoje estamos lutando contra esse silenciamento, cobrando com juros o apagamento de nossa história, nosso desenraizamento, a ocultação de nossos cadáveres. Seguimos escurecendo mentalidades, espaços de poder.

Lendo feministas como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, bell hooks, Audre Lorde, dentre outras, pude constatar que “nossos passos vêm de longe”. Muitas mulheres morreram lutando por nós, como Marielle Franco, e é nosso dever dar continuidade a essa luta contra um sistema de opressão que nos quer passivos.

Sobre a autora

patricia_anunciadaPatricia Anunciada é formada em Letras pela PUCSP, pós graduada em Língua e Literatura pela UNICAMP e atualmente estuda literatura na UNIFESP. Atua como professora da rede municipal e desenvolve projetos voltados para a área das relações étnico-raciais. Possui um canal, também chamado “Letras Pretas”, onde indica obras e autores para trabalhar em sala de aula com foco na Lei 10.639. Escreve para as Blogueiras Negras sobre literatura, feminismo e racismo.

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