Tia Carmem: a mulher do fim do mundo

Yara da Silva. Tia Carmem: negra tradição da Praça Onze. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

TIACARMEM“A mulher do fim do mundo é aquela que tem alma” – assim definiu Elza Soares em uma de suas entrevistas sobre seu mais recente CD. Carmem Teixeira da Conceição, mais conhecida como Tia Carmem do Xibuca, nascida em Amaralina no ano de 1878, era uma mulher de personalidade marcante, defensora dos seus ideais; e, juntamente com tais características, tinha uma alma livre e caridosa. Dessa maneira, Yara Silva, assistente social e neta da Tia Carmem, escreve este livro sobre a biografia de sua avó, na intenção de resgatar sua memória, a tradição e mostrar o reconhecimento da relevância desses acontecimentos como parte da história recente da cidade.

A obra inicia um resgate à ancestralidade através da história dos nossos antepassados, fala sobre a escravidão, e assim traz à tona as vivências de Tia Carmem, neta de uma africana, que chegou à Bahia em navios negreiros. Por conta dessas circunstâncias, ela foi uma das mulheres baianas que transformaram a forma de ação e pensamento do povo escravo que veio para o Brasil. Refletir sobre a ancestralidade é compreender as subjetividades de um sujeito negro em suas diversas formas. É exatamente o que Yara da Silva faz para que possamos interpretar a figura de Tia Carmem. Muitas vezes precisamos restaurar partes nossas, que foram tolhidas e impedidas de se expressar e SER, impedindo a vida plena. Buscar nossas raízes ou resgatar aspectos delas é importante para essa inteireza, principalmente se essa história sofre uma constante tentativa de apagamento. É também fazer florescer a consciência negra, manter viva a memória e se fortalecer enquanto povo preto.

Alguns lugares do Rio de Janeiro foram essenciais para a formação de Tia Carmem. Entre eles, está a Pequena África, que é o lar histórico da comunidade afro-brasileira na Região Portuária do Rio de Janeiro, onde se encontravam muitos “tios” e “tias” que vieram da Bahia – lugar que se tornaria o berço do samba e o principal baluarte das tradições africanas; onde não faltam malandros, cacumbis, candomblés e a riquíssima culinária africana. Isso tudo se desenvolve, principalmente, através da atuação de Tia Carmem do Xibuca, personagem marcante do final do século XIX até os anos 1980.

O livro nos conecta com outras figuras de extrema importância para a formação e expansão da cultura afro-brasileira. Entre elas, encontramos Tia Ciata, Tia Bebiana e compositores famosos como Donga, João da Baiana e Aniceto. Há também algumas referências religiosas, como João Alabá, Cipriano Abedé e Pai Agenor, que era um conhecido Pai de Santo na época que, junto de Carmem, buscava preservar a religiosidade africana através de críticas sobre a banalização das casas de santo fundadas no Rio de Janeiro e o comércio em que algumas tinham se transformado.

A alma da mulher do fim do mundo é forte. É uma força que germina, sofre, encurva, mas não se apaga. Carmem revela que o poder desta força vence a submissão, o medo, a dominação seja institucional ou relacional, a violência, e ganha autonomia na experiência do ser mulher, na autoafirmação da identidade negra, nas grandes demonstrações de economia solidária através dos seus tabuleiros em que vendia quitutes para sobreviver, no amor despendido nas relações e na construção coletiva de um mundo melhor. Por isso, Tia Carmem tem uma tenacidade histórica: independente do seu reconhecimento histórico, sempre foi uma mulher que se interessou e se fez presente nas lutas de seu povo. A sabedoria ancestral de Tia Carmem impressionava autoridades, entre presidentes, governadores e parlamentares, que aclamavam sua figura pública, levando-a a contribuir e a participar dos grandes eventos do calendário histórico e religioso da cidade do Rio de Janeiro. A figura de Tia Carmem também foi fortemente difundida nas mídias, através de jornais, emissoras de rádio e TV, e dessa maneira permanece até hoje, na internet e em outros meios de comunicação que registram os momentos importantes de sua vida e buscam a sensatez de sua personalidade por meio de suas opiniões sobre questões que envolviam o cotidiano da cidade e de seus habitantes.

Ler cada página dessa biografia é conhecer um pouco mais de uma história que transita entre o passado e o presente do Rio de Janeiro e confirmar a ancestralidade africana da sua população através da figura de Tia Carmem do Xibuca. Em setembro de 1999, o Rio de Janeiro recebe a exposição sobre Tia Carmem denominada “Eu sou das crianças”, fazendo referência às grandes festas de São Cosme e São Damião que ela realizava para as crianças. A exposição também ganhou contribuições da poetisa Conceição Evaristo, que ilustra muito bem a linda trajetória de Carmem aqui na terra. Esta obra trata de um retrato que pulsa a vida e sabedoria das origens da cultura negra no Brasil.

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