Dia 26 de abril de 2018, sim, há apenas alguns dias, eu fui ao teatro pela primeira vez. Não poderia ter assistido peça melhor na minha estreia do que O topo da Montanha, com Taís Araújo e Lázaro Ramos.
A princípio, o que tenho a dizer é que foi bastante difícil decidir que roupa usar para ir à Zona Sul assistir uma peça; decidi que deveria me vestir bem, fiquei o dia quase que inteiro me arrumando. Quando cheguei, finalmente, fiquei contente pelo fato de não ser minoria no local. Deu tempo, antes da peça iniciar, de refletir sobre o motivo de negros, especialmente os (negros) pobres, assistirem a peças teatrais com pouca frequência ou nenhuma. Não vou me estender sobre esse problema, mas de cara ficou uma sensação de distanciamento real.
Demorei tantos dias para escrever sobre a peça porque não sabia, por ser a primeira peça a que assisti, como falar sobre uma peça que é tão esplêndida, tão completa, que faz tanto sentido para mim; bateu uma insegurança de não contemplar tudo isso. Arrisquei-me, e essas são as minhas impressões, meus sentimentos, minhas percepções, quase que em forma de um ensaio, daqueles cheios de surpresas, pequenas e grandes lacunas.
Enfim…
A peça O topo da Montanha é sobre o último dia do reverendo Martin Luther King. Mas não é exatamente centrada nisso, e não é triste e devastadora como a morte que a gente acaba por aprender (ou não) socialmente. Ao contrário do que talvez se pudesse esperar, a peça começa com a leveza e o relaxamento da comédia. Você fica ali meio surpreso, porque o reverendo tem uma postura diferente do que nosso “pré-conceito” sugere como a imagem de um reverendo; o reverendo é gente como a gente, apenas. Ele se aproxima da gente em todo o tempo: na exaustão de mais um dia, na angústia pela falta do vício (cigarro), nos pequenos estresses pela falta de uma escova de dente e na constatação de que estava com chulé. Ele se aproxima tanto, a ponto de você duvidar se é sobre um reverendo mesmo a peça. Não deixa de ser, mas não é apenas sobre o Martin Luther King. Também não deixa de ser sobre mim, sobre você, sobre nós, sobre amor, sobre afeto, sobre lutas, sobre direitos, sobre tanto mais… A peça é um misto de ser e não ser.
Você pode achar, por essa introdução, que King é o personagem principal, e pode se enganar. Camae, a camareira, a princípio é apenas uma mulher no seu primeiro dia de trabalho; é muito esperta e desbocada, diria que uma mulher à frente do seu tempo. A partir da chegada de Camae, temos um King que flerta, e o riso é certo com esse quase romance entre os dois. Mas não há só o riso; um trovão, alguns minutos e a gente quase chora ao ver exposta a situação da população negra daquele período. O tempo todo a gente ri e a gente chora e leva sustos com os sons de trovões – pelo menos eu levei vários.
King e Camae chamam nossa atenção para as dificuldades de se fazer ouvir, as lutas diárias e muitas mazelas sociais. Algo que me marcou profundamente na peça foi o discurso que Camae faz como se fosse o reverendo – porque sim, o homem King tem uma mancha do machismo. A parte que me marcou não foi o final de seu discurso, quando ela diz bravamente (e meio exausta) “foda-se os brancos!” – embora essa também tenha me marcado, já que uma senhora ao meu lado ficou repetindo em alto e bom tom “foda-se os brancos!”, mesmo ela sendo, veja bem, branca! Eis o trecho ao qual me refiro:
Estamos brigando para sentar no mesmo balcão, mas por que, meu irmãos e minhas irmãs? Nós podemos construir nossos próprios balcões. Nossos próprios restaurantes. Nossos próprios bairros. Nossas próprias escolas. O homem branco não possui nada do que queiramos.
Ok, de alguma forma isso tem a ver com o “foda-se” os brancos no final do discurso.
Ainda sobre a Camae, ela é a mulher que confronta o reverendo o tempo todo e o lembra de que ele é “apenas um homem”. Ela fala de suas experiências enquanto mulher negra invisibilizada. Embora o tempo todo nos faça rir, ela em certo momento nos faz chorar ao falar da sua humanidade de mulher negra diminuída, agredida, estuprada e morta por um homem. Camae é muito mais que anunciadora da morte de King. Camae é uma mulher negra que segue entre a busca pelo perdão, da parte de Deus, por ter odiado muito um homem (o que a violentou e matou) e a luta para conseguir convencer um homem de que seu amor já transbordou o suficiente, e agora deve aceitar partir. Camae é uma mulher, um anjo, um mistério, que tem o propósito de recolher o bastão de Martin Luther King – e assim faz! Para além de Camae, outra personagem mulher, embora não vista, como não poderia sê-lo, é Deus. Deus é descrita por Camae como uma mulher da cor da meia noite, com olhos de estrelas e o cabelo tão lindo que chega a ser impossível descrever. Maravilhosa Deus!
A peça se encerra com a preparação para o fim (e também o início) de um homem, ou melhor, de vários homens e mulheres. A mensagem de amor, de respeito, de direitos e lutas é transmitida, o bastão é passado. Não é um bastão para uma única pessoa; a luta continua, através de várias pessoas. Saí com a sensação de que uma missão nos foi dada há tempos, e eles fizeram o favor de nos lembrar disso. Não só a todos os negros que estavam presentes, mas principalmente. Cada um com seu bastão. As mulheres, em especial, seguem com o bastão e com as asas.
Saí contente por saber que temos essa responsabilidade. Feliz em perceber que estamos sendo representados tão maravilhosamente. E com uma ponta de esperança – porque 54% da população não pode ser minoria. Seguimos!
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