Meu sonho é escrever…. e escreveu, Carolina (parte I)

Carolina Maria de Jesus. Meu sonho é escrever... Seleção, organização e notas de Raffaela Fernandez. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

Dedico essa resenha à memória de Carolina Maria de Jesus

CAPA_CAROLINAA autora de Quarto de despejo – diário de uma favelada, que vem ganhando cada vez mais espaço no universo literário, nos brinda, por intermédio de Raffaella Fernandez – doutora em Teoria e História da Literatura pela Unicamp, que há anos está imersa no universo caroliniano – com Meu sonho é escrever…, obra que reúne alguns de seus textos inéditos. Carolina Maria de Jesus nos mostra sua facilidade de transitar entre os gêneros, indo da poesia ao conto, fazendo uso de recursos estilísticos, sensibilidade poética e de um senso crítico que só reafirmam sua potência como escritora – e evidenciando o cunho elitista, racista e misógino dos que insistem em ir a público pôr em questão o seu fazer literário. Faço gosto em lembrá-los do episódio protagonizado por um professor de literatura e membro da Academia Carioca de Letras que teve a audácia de tentar diminuir a qualidade de sua obra em um evento no qual Carolina era a homenageada – porque não mais deixaremos passar racistas e machistas; porque não mais deixaremos silenciar Carolinas; porque não mais aceitaremos espaços em que se propague livre e abertamente discursos de exclusão.

Com uma narrativa suave e bastante descritiva, em seu Prólogo 2 a poetisa mineira nos pega pelas mãos e nos conduz para seus primeiros anos da infância, com o intuito de relatar como surgiu seu gosto pela leitura, como foi o seu processo de alfabetização – inicialmente, um tanto quanto a contragosto, já que sentia uma certa dificuldade em aprender – e como sua professora, Dona Lonita Solvina, teve um papel fundamental nesse caminho. Quando Carolina nos anuncia como se deu a descoberta de que já era uma pessoa letrada – “Era uma quarta-feira” –, ela nos faz viajar ao nosso passado para relembrarmos quão fascinante foi este momento de descoberta de um novo mundo; e, em contrapartida, quão angustiante deve ser viver à margem dele. É interessante pontuar também o primeiro romance lido por ela, nesses primeiros anos da infância: Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; seu entendimento da obra fica explícito quando ela relata: “Compreendi tão bem o romance que chorei com dó da escrava que foi amarrada na corrente”. Aqui, gostaria que parássemos e refletíssemos para desconstruir o estereótipo criado acerca da imagem de Carolina, como uma favelada semianalfabeta que escreve: ela era uma leitora-autora, ela lia grandes clássicos da literatura, o que influenciou positivamente seus escritos. É dizer que, por exemplo, a construção poética presente no trecho “Todos nós temos no recôndito dos nossos corações ou uma grande saudade ou uma desilusão” não se deu por acaso ou sorte; a escritora conhecia bem os efeitos emocionais que a combinação dessas palavras surtiria em seus leitores. Ainda neste prólogo, podemos evidenciar o hibridismo textual na escrita caroliniana: temos um texto majoritariamente em prosa, mas em uma determinada parte da narrativa somos surpreendidos com uma poesia de tom saudosista, evocando os tempos em que vivia na paz do interior de Minas Gerais – talvez tenha sido o sentimento nostálgico que me tenha levado até a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, ao ler essa poesia de Carolina. Deixo aqui a primeira estrofe, e gostaria que percebessem a qualidade dessa composição:

Adeus, dias de ventura!
Adeus, dias de ilusão.
Vou morar na sepultura
Debaixo do frio do chão

Críticas sociais são marcas mundialmente conhecidas da escrita dessa autora desde a publicação de Quarto de despejo, livro traduzido para mais de 13 idiomas, e que se mantêm na diversidade de textos presentes nesta obra. Críticas que se iniciam no prólogo, quando Carolina levanta um questionamento, depois de duras críticas à desigualdade – “Se o mundo fosse dirigido pelas mulheres será que ele nos proporcionaria mais felicidade?” – e que alcançam seus contos, como O Brasil, que Carolina já inicia fazendo uso de uma construção metafórica, ao comparar o país a “um jovem de 1 metro e 90 de altura”, texto no qual denuncia o atraso social vivido pelo Brasil naquela época – e que se estende aos dias atuais –, finalizando-o do seguinte modo:

Mas o Brasil já está pensando em fazer um transplante. Retirar o coração militar e colocar um coração civil! Fez um transplante antes de Barnard, retirando o coração civil e colocando um militar. Já está melhorando da inflamação e o amarelão tropical já está curado, mas ainda resta a tuberculose dos tempos de fome.

Neste trecho, somos capazes de identificar a qual contexto histórico se referia a autora – o período ditatorial –, que ao longo do conto menciona interferências feitas pelos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, além de explicitar a fome como fator de atraso do desenvolvimento social – o que, inaceitavelmente, ainda é pauta de nossas discussões.

Leia a parte II desta resenha aqui.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: