Meu sonho é escrever…. e escreveu, Carolina (parte II)

Carolina Maria de Jesus. Meu sonho é escrever... Seleção, organização e notas de Raffaela Fernandez. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

CAPA_CAROLINAEsta obra tem também um aspecto memorialístico, entretanto, não com a mesma estrutura apresentada em seus diários, visto haver aqui mais espaço para a ficção, ainda que com personagens reais. No conto Minha madrinha, viajamos pela memória nostálgica da personagem para reviver junto a ela algumas experiências vivenciadas pela primeira vez – como a primeira vez que comeu bananas fritas com canela, cocada em lata ou sardinha com pão, o que me fez lembrar a primeira vez que comi bolinho de arroz, feijão, farinha e pimenta feito pelo meu avô, uma delícia de sabor e nostalgia. A personagem se mostra tão aficionada com a incrível experiência que afirma:

Para mim, o mundo consistia em comer, crescer e brincar. Eu pensava: o mundo é gostoso para se viver nele. Eu nunca hei de morrer para não deixar o mundo. O mundo há de ser sempre meu. Se eu morrer, eu não vou ver o sol, não vou ver a lua nem as estrelas. Se eu me encontrasse com Deus, ia pedir-lhe:
– Deus, dá o mundo para mim?

Encontro-me, neste exato momento, divagando acerca da crueldade da vida, pensando na ingenuidade e pureza da infância, em como cada descoberta era de um fascínio único; pensando em como a menina Carolina não fazia ideia do que a vida lhe reservava, e que todo esse universo que ela desejava possuir se tornaria tão perverso. Como ela escreveria em Quarto de despejo: “A fome é amarela e dói muito”.

No conto Sócrates africano, temos tanto a presença memorialística quanto um vislumbre sobre o êxodo rural. O texto narra a história do avô da autora, Benedito José da Silva, um velho muito sabido e que nunca frequentou uma escola; sobre ele, as pessoas da região afirmavam:

Foi uma pena não educar esse homem. Se ele soubesse ler, ele seria o homem. Que preto inteligente. Se este homem soubesse ler poderia ser nosso Sócrates africano.

Essa assertiva nos permite fazer uma interpretação bem transparente: o valor de um homem se encontra nos anos de estudos a que ele dedicou a vida; a sabedoria adquirida da experiência não serve. Além disso, se durante todo o conto Sr. Benedito é descrito como dotado de uma sabedoria única, eu só sou capaz de ler “educar” como sinônimo de “domesticar”; é surpreendente ver um preto tão inteligente, se admite essa excepcionalidade, mas não é o tipo de inteligência legitimado socialmente – por isso, transformam o velho sábio em uma figura exótica, tal como fariam com Carolina, no auge do seu sucesso com Quarto de despejo. Nesta narrativa, encontramos também o processo migratório como um caminho possível para uma melhora de vida; percebemos toda uma idealização e ingenuidade no olhar que enxerga a cidade como se ela fosse a solução para todos os problemas do campo. Vale lembrar que, como o êxodo rural foi uma prática nacional, houve uma superlotação dos grandes centros urbanos, e o desemprego passou a fazer parte da realidade dessa população migratória. Transcrevo um trecho que fala sobre o tio Joaquim, que vive na cidade de São Paulo, especificamente em uma penitenciária – neste momento há uma nuance humorística, pois todos os que não possuem a sabedoria do Sr. Benedito acreditam que o irmão, também chamado Tiobem, está em um bom lugar; que ele foi corajoso e venceu na vida, como se a penitenciária fosse um bom lugar em São Paulo. Percebam a romantização da cidade grande:

Eu ouvi dizer que lá em São Paulo todos arranjam serviço, que os pobres e os ricos se confundem nos trajes. O homem que não trabalha lá em São Paulo é vadio mesmo. São Paulo é um estado que dá condição ao seu povo para viver […]

Neste compilado de mais de 50 textos, Carolina desmistifica qualquer leitura redutora imposta à sua vasta obra literária; ela extrapola os limites temáticos e de gêneros, atingindo a nossa aorta com sua sensibilidade, nos convidando a viajar no tempo – ora a caminho de suas memórias, ora em busca das nossas; nos fazendo rir, chorar e sentir uma saudade boa de vivências que não mais se repetirão. Carolina morreu esquecida, talvez sem plena certeza sobre o valor de sua produção; por isso, hoje é nosso dever moral levantar sérias críticas a todos que se acham no direito de considerar menor sua obra literária; devemos fazer ressoar no mundo o impacto que seus textos geram a cada leitura.

A Carolina, deixo este recado: você tem sido tema de muitos estudos por aqui, se tornou um grande exemplo de representatividade e força, o que acarretou um número inestimável de admiradores; no ano passado, foi homenageada na Academia Carioca de Letras; ainda existem racistas e machistas por aqui, mas cada vez menos os toleramos. Gostaria que soubesse que atingiu seu sonho, sim, e que somos muito gratas por termos o privilégio de experienciar sua escrita. Obrigada, Bitita!

Leia a parte I desta resenha aqui.

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