Crespo é identidade. Crespo é resistência (parte II)

22729053_1489133134496532_4533011172302061877_nEu terminei o ensino médio e fui direto para um trabalho como recepcionista. Ter começado a transição nesse momento não foi nada fácil, porque eu trabalhava com a minha imagem também, enfim, eu devia começar de algum lugar.

Eu comecei recorrendo ao Beleza Natural – que de “natural” só tem o nome, mesmo. No início eu gostava, mantinha os cachos e diminuía o volume. Lá, as cabeleireiras sempre me incentivavam a cortar as partes lisas; fui cortando aos pouquinhos, até chegar ao meu primeiro BC (big chop) – e a partir daí começaram as críticas, os olhares, as rejeições nas paqueras. A transição foi uma fase de sofrimento, vergonha, oscilação no humor, quase desistência. Até que, enfim, meus cachos voltaram; mas não eram exatamente “meus”, ainda existia aquele velho problema das duas texturas, pois a raiz crescia e lá se ia mais dinheiro para o tratamento manter os “cachos perfeitos”.

A sociedade tem problema com cabelo crespo que não forma cachos ou que não forma os cachos tão perfeitos quanto os da Rayza Nicácio. Voltarei a falar disso mais adiante.

O fato é que, um ano e meio depois de ter iniciado o tratamento no Beleza Natural, eu entrei para a universidade. A UERJ foi um espaço que me possibilitou um universo de descobertas e de encontros, com os outros e comigo mesma. Ver meus semelhantes me dava forças. Os debates me abriam os olhos para questões antes nunca pensadas. Lá na UERJ, depois de perceber muitas nuances do racismo, decidi abandonar o Beleza Natural e ser, de fato, natural. Passei pelo segundo BC e outra vez pela transição. Foi a decisão mais acertada da minha vida! E eu já conhecia mais ou menos a estrada e estava muito mais forte para aguentar as críticas e piadas.

Ter me assumido negra e crespa foi uma questão em casa, com alguns conhecidos, amigos e até na rua com desconhecidos. As pessoas diziam que eu estava seguindo uma moda, diziam que o black power era tendência. Eu tinha todo o trabalho de explicar que identidade não é modinha e que eu não sou morena, nem parda, nem mulata, entre outros, e que não tinha problema nenhum chamar alguém de pretx, desde que a pessoa seja pretx – não vai chamar sua mina de pretinha quando ela não é, viu?!

Diante de tudo disso, percebi que a luta não para quando você vence seu próprio medo de ser motivo de chacota, de não gostar de si mesma e não conseguir se assumir enquanto mulher negra crespa. Depois disso, a sociedade vem pra te sacudir, te ridicularizar ainda. E, como eu disse anteriormente, a sociedade instaurou uma nova ditadura dos “cachos perfeitos” – e meu cabelo, embora forme cachos, alguns dias ele estava em seu aspecto mais seco – a umidade acaba com nosso cabelo, né –, e sempre tinha alguém para perguntar sobre hidratações ou para dizer que o preferia alisado, ou para dizer que preferia quando eu estava indo ao Beleza Natural porque os cachos eram mais bonitos e soltos. Lembro aqui do Marcelo, jogador titular da seleção brasileira: muitos criticaram a falta de cuidado dele com o cabelo quando, na verdade, parece que ele não pode usar creme durante o jogo. E, ainda assim, cabelo crespo muitas vezes tem um aspecto de mais seco mesmo – e isso não quer dizer, definitivamente, que ele não está cuidado ou hidratado! Pior que isso é lembrar que fizeram uma petição para que os pais da pequena Blue Ivi (Beyoncé e Jay-z), que na época tinha apenas dois anos, cuidassem do seu cabelo. Conseguiram 3.500 assinaturas!

Existem muitos outros casos de crianças que sofrem racismo todos os dias por causa do cabelo crespo. Só dá um google.

Existem muitas formas de oprimir, ridicularizar, tentar diminuir uma pessoa por causa do seu cabelo. Não é muito incomum ouvirmos coisas como: “você penteia?”; “como faz para lavar?”; “dá pra esconder muita coisa aí dentro”; “não é peruca? Parece”, entre várias outras – e, gente, não vai metendo a mão no cabelo de ninguém não, por favor.

Toda essa luta não para, nunca. Precisamos ensinar mais meninas a se amar como são, a amar seus crespos, a não se sentirem menor que ninguém. Ensinar que é ancestralidade, é identidade, é resistência!

Lembrando a pergunta que fiz lá em cima: “Quem daria tudo isso a uma menina negra lá na favela?” A resposta é: eu, você, nós negrxs.

Graças ao acesso ao conhecimento, à coletividade, à busca pela minha identidade, eu conheci o meu cabelo e aprendi a amá-lo do jeitinho que ele é. Parece clichê para terminar, e é, mas pensa em toda essa trajetória até aqui –

A alienação ancestral surge na história do cabelo como qualquer coisa a que se exige silêncio, uma condição de que o cabelo poderia ser um subterfúgio enobrecido, uma vitória da estética sobre a vida, fosse o cabelo vida ou estética distintamente. Os meus mortos estão, porém, em crescimento. Falo e vêm como versões do que foram de que não lembro. Esta não é a história das suas posturas mentais, a que não me atreveria, mas a de um encontro da graça com a arbitrariedade, o encontro do livro com o seu cabelo. Nada haveria de dizer de um cabelo que não fosse um problema. Dizer alguma coisa consiste em trazer à superfície aquilo de que, por ser segunda natureza, não nos apercebemos. (Djaimilia de Almeida, Esse cabelo)

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