“Minha história termina com liberdade”

Harriet Ann Jacobs. Incidentes na vida de uma garota escrava, escritos por ela mesma. Tradução e edição de Felipe Vale da Silva. São Paulo: Aetia, 2018.

incidenteHoje, finalmente temos condições de ler Incidents in the life of a slave girl como uma obra autêntica, produzida a partir da árdua trajetória biográfica de Harriet Ann Jacobs (1813-1897). Muitos foram os elementos evocados para que, por um longo tempo, a veracidade do relato fosse posta em dúvida – desde as evidentes qualidades literárias da narrativa até sua estrutura pouco usual, por exemplo –, fazendo com que o livro fosse considerado uma obra fictícia produzida por alguma escritora abolicionista; as suspeitas recaíam, sobretudo, em Lydia Maria Child, que editou o livro, e só foram dissipadas após longas pesquisas da historiadora Jean Fagan Yellin. Isso nos permite reconhecer o quanto Harriet precisou lutar para publicar seu livro – rejeitando, inclusive, uma insidiosa proposta de Harriet Beecher Stowe, autora de Uncle Tom’s Cabin –, laboriosamente escrito ao longo de nove anos. E o resultado de tamanho esforço é uma obra de inestimável valor, que chega agora ao Brasil em uma nova tradução, assinada por Felipe Vale da Silva.

É só após a morte de sua mãe, aos seis anos, que Harriet descobre seu destino como escravizada, a partir das conversas que ouvia; todavia, não seria esse o início de suas tribulações, visto que seria ainda bem tratada por sua senhora. Após a morte dessa, contudo, e em respeito à vontade expressa no testamento, Harriet se torna propriedade de uma criança: Mary Matilda Norcom, filha do irmão de sua senhora, então uma criança de três anos (na verdade, dois anos mais jovem do que julgava a própria Harriet). É quando ela conhece o tratamento dispensado àquelas pessoas condenadas à escravidão, como seu irmão William, comprado pela mesma família – que prontamente desfaria quaisquer esperanças de que algum dia lhes fosse possível alcançar a liberdade, quando Harriet lhe assegurava que dias melhores chegariam: “Teremos que ficar aqui para o resto da vida; nunca seremos livres”. Felizmente, William estava errado; mas a jornada rumo à liberdade não se revelaria fácil.

Na condição de propriedade do “doutor Flint” – nome fictício sob o qual se oculta James Norcom, respeitado médico da Carolina do Norte, louvado por seu trabalho de caridade – e de sua esposa, pais de sua infante senhora, Harriet passaria por terríveis tormentos. É especialmente notável a descrição da “senhora Flint” – na verdade, Mary Matilda Horniblow –, uma mulher que “não tinha força para cuidar de seus assuntos domésticos”, mas cujos nervos lhe permitiam “sentar em sua cadeira e ver uma mulher ser chicoteada até que sangue escoasse de cada açoite”; uma mulher que era membro da igreja, mas que, caso o jantar não fosse servido na hora exata, cuspia em todos os vasilhames e panelas, a fim de que a cozinheira e os filhos não pudessem aproveitar as sobras de comida.

Ao chegar à adolescência, Harriet precisaria lidar com um dilema: na condição de escravizada, como poderia vivenciar o amor? Percebendo-se, aos quinze anos, como alvo das lascivas investidas de seu senhor, a adolescente se descobre simultaneamente como objeto dos ciúmes da senhora Flint; apaixona-se por um negro liberto, mas se vê diante da impossibilidade de desposá-lo – e constrangida pelo “doutor Flint” a procurar entre os negros escravizados sob seu poder algum marido, se assim desejasse. Neste momento, tem lugar a veemente resposta de Harriet ao “doutor Flint”, quando esse afirma que, por amar um preto, ela se rebaixava à vulgaridade dos animais:

Se ele for um animal, eu sou um animal, pois ambos somos da raça negra. É correto e honrável para nós nos amarmos. O homem a quem você chama de animal nunca me insultou, senhor, e ele não me amaria caso não me cresse uma mulher virtuosa.

Harriet se preocupa em esmiuçar as razões de tomar como amante Samuel Treadwell Sawyer, no relato alcunhado “senhor Sands”, mas não é difícil empatizar com os motivos que apresenta – desde a busca por liberdade ao relacionar-se com um homem disposto a oferecer-lhe um tratamento distinto do que recebia de seu senhor, por um lado; até, por outro lado, a possibilidade de fazer dessa relação uma possibilidade de vingança e um caminho para a emancipação: ao descobrir o relacionamento, não haveria a possibilidade de que o “doutor Flint” decidisse vendê-la, e “Sands” aproveitasse a oportunidade para comprá-la? Não seria esse, contudo, o desfecho da história; de fato, o episódio enseja um recrudescimento da violência, que acaba por incidir também sobre os dois filhos que nascem da relação.

O longo período que Harriet, após finalmente conseguir fugir, permanece escondida no sótão de sua avó – após passar algum tempo refugiada no porão de uma amiga – é uma das passagens mais pungentes da obra. A impressão que a descrição desse episódio suscitou na crítica ensejou interpretações metafóricas; talvez seja possível percebê-las como evidências da incapacidade de se admitir os extremos a que pode chegar uma mulher negra que, habituada por anos à violência, pode finalmente encontrar para si um espaço de liberdade – mesmo que estreito a ponto de nele só ser possível engatinhar; mesmo que escuro a ponto de um buraco de menos de três centímetros representar uma alentadora fonte de luz. Importa não desprezar, ademais, o efeito reconfortante que para Harriet teve a possibilidade de ver os filhos e ouvir suas vozes, encorajando-a a suportar os anos ao longo dos quais permaneceu escondida, pacientemente aguardando uma mais efetiva chance de libertação. Longos sete anos depois, a sonhada fuga para o Norte afinal se concretizaria.

Leitoras, minha história termina com liberdade; não do jeito usual, com casamento. Eu e meus filhos agora somos livres!

Só dez anos após a fuga Harriet se tornaria, de fato, livre, não mais correndo os riscos de ser reescravizada pela família Norcom, que não deixaria de tentar recapturá-la. Incidents in the life of a slave girl seria publicado quase duas décadas depois; em seus últimos anos, ela manteria uma pensão ao lado de sua filha e não abandonaria a luta por melhores condições de vida para as mulheres negras, em meio ao surgimento de grupos de brancos supremacistas.

À guisa de conclusão, gostaria de abordar especificamente a edição que serviu como base para esta resenha, a terceira em língua portuguesa (há edições da brasileira Campus, de 1987, e da portuguesa Antígona, de 1993). No que tange ao título, Incidentes na vida de uma garota escrava, o tradutor Felipe Vale da Silva explicita sua acertada opção por não suprimir o termo “garota” (girl), de modo a enfatizar a importância que Harriet concede às violências que sofreu ainda quando criança e adolescente; não obstante, opta por preservar o termo “escrava”, mantendo a opção já utilizada nas duas outras traduções – conquanto o tradutor justifique essa opção argumentando que Harriet nasceu cativa, não estando portanto na condição dos africanos livres que foram escravizados, pode-se objetar que a opção pelo termo “escravizado” frequentemente encerra um propósito essencialmente político (qual seja: o de ressaltar que, em todos os casos, sempre se está a falar de seres humanos escravizados, de modo a aludir à arbitrariedade dessa condição; perspectiva que também se aplicaria ao caso em tela). Para além disso, a edição publicada pela Aetia traz um excelente conjunto de apêndices, que inclui uma lista de pseudônimos e dados biográficos; uma linha do tempo (que abrange não apenas a trajetória biográfica de Harriet, mas também eventos relevantes no que tange à história dos afroamericanos e à história editorial de Incidentes); e um glossário que, para além da elucidação de termos característica de seções assim intituladas, sintetiza relevantes discussões conceituais, e mesmo teóricas, que muito contribuem para o entendimento da obra. Finalmente, importa ressaltar que essa obra integra o valioso projeto da editora Aetia de publicar traduções anotadas das slave narratives, obras fundadoras da literatura afro-americana, de inestimável valor também para o público brasileiro.

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