Da salvação à opressão: Deus é mulher preta!

Harmonia Rosales, "The Creation of God"
Harmonia Rosales, “The Creation of God”

De um lado o evangelho, Cristo, o Espírito Santo e muitas bíblias pela casa. Lá estava minha avó materna. Do outro, o candomblé, Orixás, altares e rituais. Com cigarro na mão, lá estava minha avó paterna. Transitando entre esses dois espaços, finquei o pé no evangelho mesmo sem saber que, durante boa parte da minha vida, eu seria influenciada por tudo aquilo que ele representa. A religião revelaria a mim sua outra face: aquela que fundamenta, doutrina, determina lugares — e, principalmente, oprime.

Nos primeiros meses de vida fui apresentada à igreja evangélica, era uma espécie de consagração, na qual meus pais entregavam minha infância ao Senhor. Infância entregue, avançamos para a adolescência, lugar de complexidade, de questionamentos, quando eu comecei a entender, aos poucos, como funcionava o sistema religioso. Na igreja, minha família era representada por mulheres negras: minha avó, minha mãe, minha tia, minha irmã e eu. Todas nós exercíamos papéis de liderança, embora nem todos enxergassem isso. Era como se nós estivéssemos ali como coadjuvantes e não como protagonistas. Quem pensava e representava a igreja eram o pastor, o ancião e o diácono. Todos homens. As mulheres estavam sempre fazendo o papel de cooperadoras, auxiliadoras, ainda que todo o trabalho de sustentação política fosse feito por nós, mulheres negras. Tudo isso era explicado por um simples “Deus quer assim” e isso me fazia aceitar, ainda que vários questionamentos viessem à minha cabeça. Mas quem contestaria a palavra de Deus?

Tempos depois, o estado de saúde de minha avó já a impossibilitava de frequentar os cultos; foi aí que percebi uma outra questão que não estava ligada só ao gênero, mas à raça: uma mulher negra, para ser minimamente valorizada dentro da igreja, precisava estar em movimento. Se não produz, não existe. Enquanto minha avó estava nas bases de sustentação da igreja, as pessoas ainda tinham algum cuidado para com ela, apesar de todas essas questões que coloquei acima; quando ela não pôde mais estar nesse lugar, ela simplesmente deixou de existir. Eu contava nos dedos os “irmãos” que vinham visitá-la enquanto estava enferma. Adoeceu só. Morreu solitária. Nem mesmo da famosa santa ceia minha avó foi convidada a participar, em todos os anos em que deixou de frequentar a igreja; só consigo recordar uma única vez em que ela pôde celebrar o “mais poderoso sacrifício de Cristo”. É como se Cristo escolhesse quem poderia beber do seu cálice e comer do pão; desse modo, a igreja segue propagando suas lógicas de opressão.

Quando minha avó morre, minha mãe se afasta do templo e eu perco minha segunda maior referência lá dentro; no entanto, guiada por um fanatismo religioso mascarado de “chamado de Deus”, permaneço no “não-lugar” onde fui colocada. Essa permanência foi fundamental para eu entender o quão problemático era o contexto em que eu estava inserida. Entendi o que era ser uma mulher preta dentro da igreja. Entendi que a questão racial, sobretudo no que diz respeito à construção e fortalecimento da identidade negra, nunca seria pauta nas igrejas evangélicas. Entendi que eu precisava negar e demonizar diversos elementos da cultura africana e afro-brasileira presentes na minha família paterna, pois acreditava que todos cultuavam o diabo e incluía cada um deles em minhas fervorosas orações. Entendi também por que eu precisava embranquecer meus traços, minha tia já havia me alertado: “Você faz coisas importantes na igreja, menina, tá sempre à frente das atividades, como quer que as pessoas te levem a sério com esse cabelo duro?” Ela tinha toda a razão. Foi só eu parar de alisar o cabelo para ouvir: “Nossa, você está diferente. Não me leva a mal, mas eu preferia você com o cabelo liso, ficava mais séria.” Em muitos momentos, algumas falas eram tão recorrentes que eu comecei a me afirmar como branca para as pessoas. Para mim, tudo isso fazia parte do preço da salvação. A porta era estreita demais para minha existência.

Colocar essas questões em xeque não é uma tentativa de ridicularizar as instituições religiosas, muito pelo contrário. É convocar a igreja para uma responsabilidade que é sua. Ainda ouço muito a expressão “política e religião não se misturam”, na intenção de convencer os fiéis a uma não participação política. Mas não vi esse mesmo discurso sendo utilizado no período eleitoral. A igreja é uma entidade política e precisa assumir seu compromisso no combate às opressões, não reproduzi-las.

Essa ideia de colocar a igreja numa posição de imparcialidade, de um discurso sem finalidade, que objetiva apenas a salvação, já não cabe mais — ou melhor, não nos engana mais. Há muita intencionalidade quando o famoso versículo bíblico “mulheres, sujeitai-vos aos vossos maridos” parece ser o dogma central norteador das relações entre homens e mulheres. Quando os casos de violência doméstica tendem a ser caracterizados como problemas a serem resolvidos entre o casal, por meio de preces e orações. Quando, em sua maioria, as mulheres também não ascendem a postos de sacerdócio — entre os evangélicos, chamados de pastores. São, no máximo, obreiras ou auxiliares. Quando os setores evangélicos capturam pessoas adeptas das religiões de matrizes africanas, em sua maioria negras e negros, através da inferiorização e da demonização. A igreja que oferece a salvação é a mesma que oprime. Não consigo ver Jesus fazendo este movimento, Ela se revela a mim de outra forma, como em Cantares (cap. 1, vers. 6): “Sou negra (morena) mas (e) bela, oh filhas de Jerusalém. Não vos fixeis em que sou morena, pois o sol me bronzeou. Os filhos da minha mãe zangaram-se comigo e mandaram-me cuidar das vinhas”. Como minha avó, minha mãe, minha tia, minha irmã e eu, Deus é mulher preta! Asè!

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